terça-feira, 29 de novembro de 2011
Não há vagas nos estacionamentos
Não há vagas nos estacionamentos
Tão pouco há vagas nas ruas.
Não há vaga em canto algum,
Nem para os carros
Nem para o olhar da moça ao outro lado.
Vagam os gestos pelos olhos de outros,
E não existe vaga que já não fosse de outro.
Definitivamente, não existe preço melhor a pagar
Do que o preço da falta de vagas a pagar.
Não há vagas, nem mesmo nas lojas
Onde se diz em palavras garrafais: há vagas para clientes
Sem vagas.
Não existem as vagas,
Vaga-lumes-divagares na acepção mais vaga da palavra.
Há vagas sim. E há vagas não.
Pelas vagas dos que vagam perdidamente pelas várzeas,
Largas vagas que nos restam nas esquinas Vargas.
E se existem mais Vagas do que anúncios,
Sempre mais vagas hão de existir que Getúlio.
Eu sei que há vagas e ponto final.
E mesmo que ninguém diga que saiba,
Eu sei das vagas, das caras, ruas e praças.
Eu sei da vaga madrugada
Pelas ruas vazias,
Onde qualquer vagabundo,
É mais vaga-lume do que quem diz.
E vagueando pela praça,
Apertando o vaso constrito desse cópia-poema,
Olheio o vago sujeito composto,
O primeiro desse justo-esboço.
E há uma vaga-novembro nesse exato momento,
Desavisada e oca, vaza-poema.
Desencaixada, vaga e rouca,
Poucas palavras,
Largo-pobre-vago-poema.
(Francisco Gabriel Rego)
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
Sim, ela respondeu, mas só, à noite, pra o seu travesseiro rosado:
- Se é errada é porque tenho que esconder que é escolha. Uma coisa ou outra...
Inventou a certeza que só podia alimentar umas delas: a angústia ou a possibilidade de continuar vivendo. Nessa noite sonhou que era criada por uma hiena triste.
pág. 239 "O laço que prendeu meu cabelos enforcou meus filhos", Álvina Tropero.
terça-feira, 22 de novembro de 2011
Frases de um membro frouxo num percurso de deus
segunda-feira, 7 de novembro de 2011
Li na página vinte
Pedro Páramo, Juan Rulfo
quinta-feira, 8 de setembro de 2011
quando a vida não é assim mesmo
O homem que abria a porta do banheiro em direção ao vaso sanitário não pensava sobre seu passado desenhado em formato de seta - habitual, corriqueiro - muito menos refletia sobre o sanduíche de salame que o fazia estar ali, com tamanho mal estar. Encostando lentamente suas pernas cobertas de pêlos sobre a auréola de plástico do vaso, buscava apenas aquela paz evacuadora, enquanto folheava uma revista quatro rodas que roubara dias antes na sala de espera do dentista. Mesmo concentrado nos mais variados acessórios dos carros mais novos, adentrou forçosamente passivo na conversa do vizinho ao telefone: "Quem? Quem morreu?", e depois da longa pausa: "é isso, a vida é assim mesmo. A família tá bem de dinheiro?". As frases passaram desapegadas num primeiro momento, como normalmente sucede em tais circunstâncias, mas logo, de um modo virulento e estranho, aquelas pequenas orações foram se alargando no pensamento, e o homem gradualmente foi ficando mais estático sobre seu pequeno trono de paz. Não mais que dois minutos depois, já tentava desembolar as palavras que chegavam aleatórias pelo basculante, sendo agora, como de costume são, apenas sons distantes do vizinho ao lado. As palavras pregam peças, as vezes não as queremos, mas elas nos invadem, e quando às buscamos, famintos, tornam-se sussurros banais. Dessa curiosidade peculiar a orelha do homem arrepiou subitamente. Ele queria ouvir um nome, este que serviria de pretexto pra pensar sobre a pessoa... Pessoa que o fez arquear as sobrancelhas, depois de tempos sem fazer uso delas de modo realmente expressivo. Agora de pé, nu da metade do corpo pra baixo, tendo a tal revista ainda atada a mão direita, passou a outra mão (livre) sobre a testa levemente suada. Nos minutos seguintes se dedicou a ouvir o que fosse, somente. Uma torneira assobiando água de um lado, uns berros infantis do outro, e todos os veículos - com ou sem acessórios, novos ou velhos - da rua. Nem uma careta arriscou fazer quando o rosto derramou uma lágrima, daquelas que parecem mais suicidas de tão rápidas que caem. Do olho ao chão e pim, espalhou. Ninguém sabia se não eu, e por isso mesmo conto, que era justamente no fim semana passado que este nosso personagem - completamente vestido - gritava junto a outros para o futebol do televisor, enquanto a pessoa sem nome, que serviu de assunto pra conversa que ele ouviu, engasgava em seus últimos suspiros. E absurdo é que do quinto andar do hospital, este colado ao prédio de onde os gritos da torcida rasgavam o ar e chegando sem importância a outro homem, outro que até agora não havia nada de escrito, apesar de bastante pensado. Encostado com a testa nos braços em uma pequena mureta da varanda exterior do centro hospitalar, derrubando lágrimas pela pessoa, que sim sabia muito bem o nome de cor desde pequeno. Líquido lacrimal bem diferente daquele descrito há pouco, tanto pela razão clara e imediata que o provocara, quanto pelo fato de ser recebido com fortes contrações faciais, riscando tortuosamente as bochechas enquanto uma frase saia repetidamente junto ao suspiro...
"Não, a vida não é assim".
terça-feira, 16 de agosto de 2011
A Melancolia do fim em prol do equilíbrio
Melancolia é norteado (como é hábito na cinematografia do diretor) através dos poderes femininos e sua intensa ligação com a natureza, com o cosmos. Nesse sentido o filme é quase uma continuação de Anticristo, do mesmo modo que a fotografia e o tom das cores dão uma densidade visual em cada sequencia. A clara diferença entre os filmes está no ritmo, afinal há tempo e calma pra se pensar Melancolia, permitindo um deslumbramento mesmo diante da agustia crescente – como na cena em que os personagens observam a proximidade do planeta. O tempo de Anticristo se desenrola sobre o efeito do choque, da confrontação com a dor excessiva. Agora, depois que o elo entre homem e mulher foi cortado no filme anterior, a personagem principal parece livre para sentir o mundo ao seu modo, sem um vínculo preso as condições terrestres, como a Mulher atada de Anticristo. Ela renasce aqui não pra promover um acerto de contas, mas pra um doloroso amadurecimento. As primeiras cenas já nos entregam com a precisão de uma câmera super lenta todo o início-meio-fim do filme, para daí sim seguir um trajeto trépido com uma câmera na mão, incerta em meio a tantos significados.


A nudez da personagem na floresta é a constatação da sua sabedoria e descoberta, sem antes, claro, passar por um confuso percurso de desconstrução. É disso que a primeira parte de Melancolia se debruça. Lars faz uso do clássico ritual matrimonial para exibir o palco perfeito das invenções de um futuro próspero, que maqueia a verdade em um jogo de poder e aparência. Daí as peças, espaços e personagens do diretor vão encontrando seus lugares para deixarem suas máscaras, revelando suas reais simbologias. O cunhado de Justine é o homem arrogante iludido pela crença na opulência e no conhecimento científico. Inseguro ao ponto de tentar expulsar a figura que mais ameaça seu poder: a mãe de Justine, ácida e pessimista, já farta de todo aquele "teatro" que não durará para sempre.



domingo, 17 de julho de 2011
quadrado de sol - um filme

Passei a manhã observado o tamanho exagerado das minhas unhas... Lembro da minha tia que dizia que eu era a única que não sabia guardar os brinquedos, que não sabia me cuidar direito. Ainda não sei e você entender isso. Um pedaço de sol recortado pela janela forma um quadrado pequeno na cama... É estranho o modo como quis me tornar aquele quadrado iluminando no lençol. Apenas ser uma coisa... Com forma, cor e trajeto definidos.
Queria deixar existir... Sem conceber.
segunda-feira, 11 de julho de 2011
CUAL – Manifesto da Urgência
Dizem que há uma média de tempo que parece determinar a produção de um longa-metragem feito na Bahia. A grosso modo são quatro longos anos que separam as gravações até a conclusão da pós-produção. A distribuição é outra história de espera. E quando finalmente estão lá na sala, projetados, quem os vê? Como filmes pagos com dinheiro público não retornam para as pessoas que o pagaram? Como a política que de editais pode dar conta do tripé produção-distribuição-exibição num mercado dominado por um modelo hegemônico e inibidor de nossa própria cinematografia? Questionamentos que se repetem constantemente como bordões tragicômicos. Aceitar essa condição agônica é negligenciar não a arte cinematográfica e seus pilares estéticos, mas o modo como as coisas são reproduzidas e descartáveis a todo tempo, em todo lugar. Precisamos de filmes que nos tirem desse conformismo velho e gasto que nos invade todos os dias quando acordamos. Nos mostraram como Rambo matava russos na sessão da tarde, enquanto nossos personagens se mantinham e continuam invisíveis, bem ao nosso lado, nas calçadas, filas, elevadores, entre as latas de lixo. A TV foi nossa babá e certamente não estamos contentes com essa criação.
Precisamos de mais filmes e menos lamentações. Essa parece ser a única certeza na qual podemos nos apegar claramente. Mas como produzir novos meios diante de situação tão complicada, mesmo pra aqueles já estão tentando realizar cinema há tanto tempo? Como os novos realizadores podem agora se inserir nessa intrincada seara? Nossa responsabilidade parece muito mais séria do que nos damos conta. Em tempos em que as câmeras digitais parecem contribuir para um maior fluxo e diversidade de produções em toda parte, convivemos com uma mordaz contradição, espera e ausência de novas imagens e abordagens. O acesso as novas tecnologias empolgam ao mesmo tempo que nos confundem. Buscamos assimilar toda uma amplitude de vivências e outras experiências para convertê-las em propósitos e ações organizadas, coletivas, que ocupem espaços e nos ampliem para além das nossas salas confortáveis.
Acreditamos que produções independentes realizadas cooperativamente são alternativas eficientes no momento que dilatarmos nossa ideia do que é cinema, para quem e porquê devemos fazê-lo. Hoje formatos, tamanhos e temas não mais parecem encontrar um limite como antes, e a máxima de Glauber de uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, ganha ainda mais sentido do que na época que foi proferida. Nossas maiores influencias – mais do que os filmes em si– devem ser outros exemplos de atitude e ocupação, resistência e subversão que emergem a todo momento e lugar.
É urgente termos mais filmes na Bahia agora porque houveram filmes na Itália do pós-guerra, na pós-revolução cubana, porque há “Harry Porter” nos cinemas todos os anos, porque há filmes sendo vistos e feitos na Ceilândia e outras periferias.
Estamos aqui pra assumirmos nossa condição, mas mais que isso, nossa vontade.
Acreditamos que a vivência acadêmica, o aprendizado teórico deve ser uma pequena parte de um processo maior, que com esforço pode realmente nos aproximar, acolher, transformar. Extrapolar os limites de um rótulo geográfico e redutor de “Cinema baiano” - como uma mera área de atuação - pra assumirmos o fazer de um cinema de agora, urgente e necessário, atento as demandas e lutas que farão das nossas imagens pontos de convergência e transgressão.
“Por meio do cinema, é necessário situar os problemas mais complexos do mundo moderno no nível dos grandes problemas que, ao longo dos séculos, foram objetos da literatura, da música e da pintura. É preciso buscar, buscar sempre de novo, o caminho, o veio ao longo do qual deve mover-se a arte do cinema."
Se Tarkovsky, de tão longe, há tantas décadas atrás, proferiu essa frase, é porque o cinema de todo e qualquer lugar precisa do mesmo e transcendente impulso.
Coletivo Urgente de Audiovisual
Julho de 2011
terça-feira, 5 de julho de 2011
terça-feira, 21 de junho de 2011
domingo, 12 de junho de 2011
um ano que eu pisava em ti
domingo, 5 de junho de 2011
Tomás - A última ceia
terça-feira, 31 de maio de 2011
Momentos pagãos e sagrados com Paul
Era um homem de estatura mediana a mais ou menos 60 metros que eu tentava enxergar entre mãos, cartazes, gritos, palmas e luzes ofuscantes. Diminuído pela distância, mas duplicado algumas vezes pelo telão, pela canção bendita - "all your life you were only waiting for this moment to arise"- deixando a moça desconhecida mais próxima de mim com os olhos úmidos, em tons avermelhados e recheados de uma emoção que se manteve contida por várias horas de espera... A fila era pra ver aquele senhor com mais de setenta anos entornando melodias e tons, conduzindo sensações desde os nossos antigos e mínimos momentos. Imaginei a menina que foi embalada no berço com o pai balbuciando "the long and winding road”, ou aqueles primos que brincaram na rede ao som de "o-bla-di o-bla-da". Cada um expandia suas memórias compartilhando o quando, como e onde tiveram suas histórias emolduradas por aquelas músicas. Bastava encostar na fila pra escutar as justificativas, os esforços, a vontade cheia de ansiedade em estar ali.
Tantas expectativas positivas não impediram uma dose estranha de tensão, proporcionada pelas armas e caras policialescas em torno, protegendo o direito, a compra correta dos ingressos. Era entre fãs e homens da lei que tentávamos burlar o esquema, numa mutreta conturbada com um cambista de terno e gravata, com uma refinada e inesquecível listra dourada no meio dos sapatos pretos. Parecia justamente o tipo de cena que muitos julgariam inverossímil se vissem fora da vida real. O cambista (que taxativamente negava tal nomeação) enrolava, ia e voltava prometendo toda a garantia e direitos ao consumidor como se fosse o gerente das casas bahia, concatenando ideias no mais puro sotaque de malandro carioca. Era Paul, não podia sair barato, diziam, enquanto o lucro ia sendo injustamente repartido. Alguns vigiados pela polícia enquanto outros, como sempre, protegidos e guiados por ela. Foi assim que repentinamente, enquanto criticava o modelo de consumo e apropriação do discurso de massa pelos beatlemaníacos, notei um burburinho crescente: cachorros rosnando, rádios emitindo chiados, um coro de fãs ensaiando sua performance gritante, e "… Paul chegou!", ouvi inquieto. Me vi como ímã encostando na barra de ferro a minha frente, vendo o aproximar veloz de uma maosinha simpática pra fora do carro. Pude sentir um tremor contraditório subindo pela garganta que pareceu um berro... Pronto, a partir daí já estava aquecido pra o que viria: uma tempestade de clássicos que trilhavam entre a fase Wings, solo e aquela que muitos parecem preferir, a conhecida fase dos besouros. Meu corpo foi rodopiando e balançando na medida em que o setlist ia sendo executado. Tamanha turbulência me causou uma ligeira amnésia que impedia de lembrar quantos clássicos estavam por vir ainda. Fenômeno esse que curiosamente só reforçava a força das músicas em seus primeiros acordes. Depois de “Yesterday” e “Eleanor rigby” já se podia esperar todo tipo de comentário da platéia. Uma velhinha baixinha passou gritando “lindo, gostoso” e outra de 14 anos dizendo “ele é tudo pra mim”. Era mesmo um show-culto que respeitava evidentemente os momentos pagãos e os mais sagrados. Em "helter skelter" eu pisava e dançava sobre as cinzas dos deuses maias, assumindo o transe da loira do banheiro até ser tocado por uma mão estranha segurando meu ombro. 1, 2, 3, 4 segundos de tensão. O estranho só tentava passar sem ser atingido por um braço em descontrole. Já em "Hey Jude" liberava todas as energias e tragava outras num mantra de quase dez minutos de "naaaaa-na-na-na-na". Engraçado como a gente só se une pra cantar uma música pop, pra torcer pelo time ou pra beatificação de uma nova santa. Só. Estádios sempre são palcos das unanimidades. Pior era como boa parte dos presentes vivenciaram tudo aquilo através das lentes das câmeras e celulares que impiedosamente gravavam o show, numa epifania que parecia eleger a simulação como meio de sentir. Eu ainda tentei registrar alguma coisa, mas fui impedido oportunamente graças a explosão de "Live and let die". Viva a rouquidão e as dores de pescoço...
Como se não bastasse o bom-senhor-com-cara-de-moço-simpático, depois de soltar várias vezes algumas frases em um português truncado, ainda recebeu no palco quatro fãs em prantos, pedindo autógrafos, abraçando repetidamente e saindo como se abençoadas pela entidade... É, na ausência dos deuses muitos elegem mortais bacanas para seus altares.
O cara ali no meio de tudo podia ser mesmo um mito, um herói pra muitos, um cover dele mesmo, e depois de duas horas e meia de show e alguns dias depois da experiência, continuo sentido uma rara e contagiante constatação de perceber como muitos querem mesmo é simplesmente encontrar brechas pra achar as mesmas coisas... deixando ser e viver sempre perto das antigas e boas canções.
segunda-feira, 23 de maio de 2011
Liturgia das horas
domingo, 8 de maio de 2011
Tarefas de casa

Mesmo diante de uma crise iminente e agônica o cinema baiano parece nunca perder a capacidade de questionar modelos, provocar a si próprio e sua história. Nessa perspectiva metalinguística Edgar Navarro constrói “Talento demais”, debochando e homenageando aqueles que se aventuraram nessa contagiante contradição histórica que é fazer cinema na Bahia.
Mesclando passado e presente, resgatando personagens e os confrontando numa mesma sequencia, Navarro expõe, através de nossos ícones cinematográficos, a incapacidade de nos libertarmos de uma constante crucificação política/ cultural que nos impede de produzir outros sentidos, histórias, espaços e ideias para nossas câmeras na mão. Estamos atados ainda a esses personagens, não apenas por celebração, mas como condição, não à toa Navarro costura sua narrativa através de um remake da emblemática cena Meteorango Kid, filme que já escrachava as mesmas questões mais de vinte anos antes. Todo esse alardeamento homenageador de “Talento demais” se edifica não apenas por seu tema, mas principalmente pela pela forma que imprime suas imagens. O vídeo falando de cinema parece insuficiente esteticamente ao mesmo tempo que reforça sua denúncia, sua febre, tendo o improviso no lugar da engenhosidade e criatividade, como foi com os cineastas que precederam Navarro e seus companheiros. A textura jornalística de “Talento demais” é ainda mais acentuada pela voz garbosa que nos guia em off pelas várias fases da nossa cinematografia. Talvez sejam essas contradições estéticas que Navarro queria nos expor junto dos depoimentos, das imagens de arquivo, da personificação desse cinema em cada um que surge na tela como diretor, realizador, ator ou personagem. Ali, mesmo meio inconfortáveis diante da fita magnética, unem suas angústias e provocações com uma dose aliviante de ternura e humor.
A lentidão e o talento (do qual o título une os sentido) desses processos cinematográficos no Brasil, na Bahia, demonstram que não bastam ideias para o fazer cinema, mas também resistência, dedicação e paciência. Ao fim de “Talento demais” tendemos a seguir por dois caminhos, ambos dolorosos: o desencanto apocalíptico ou a redenção a favor do transe encantador das imagens. Observando a carreira de Navarro antes e depois desse vídeo não é difícil definirmos qual a escolha mais evidente, necessária.
quinta-feira, 28 de abril de 2011
Tio Boonmee, que pode duplicar a experiência do visível

O filme desfocou umas três vezes, a luz vazou da tela, mas foi engraçado como esses pequenos defeitos de projeção contribuíram para que os sentidos simbólicos de "Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas" ganhassem ainda mais campo e profundidade. Depois dos primeiros trinta minutos olhei pra cima, busquei o feixe de luz do projetor, o segui até a tela como se desse conta da simplicidade daquele processo pela primeira vez. Olhei ao redor, a sala de cinema quase cheia e eu no meio de dois casais, que eventualmente sussurravam piadas e comentários sobre um filme que eles julgavam por dois aspectos que, por excelência, deveriam ser secundários: a palma de ouro em Cannes e as cinco estrelas do jornal. "Como é que pode?! Esse povo ta doido...", disse um deles rindo, provavelmente se referindo ao júri que premiou o filme e ao crítico que pontuou as estrelinhas. Essa revolta, aparentemente ingênua, acabou sendo bastante pertinente pra aquele momento, no meio de um filme que questiona com tanta eficiência nossa crença cinematográfica, e mais que isso, nosso encantamento sobre as imagens, o que enxergamos ou o que inventamos sobre nós em sonhos, na morte, no futuro. Esferas de realidade construídas internamente, antes de tudo, através de cenas, sequências e planos. Tio Boonmee está cercado dessas janelas, se abrindo literalmente como pontes pra ver além (pro além) do nosso conforto cético, condicionado ao ritmo frenético da informação. Não à toa os personagens do filme se deslocam, logo no início, da cidade pra uma fazenda distante, calma e cercada por uma densa floresta que abriga sombras, almas e seres jamais desprendidos de suas responsabilidades e memórias. Guiado por esses princípios o filme potencializa esses lugares da ação, concedendo a geografia do “primitivo” (montanhas, florestas e cavernas) uma consagração espiritual, onde os vínculos e reencontros são concretizados, mais do que nos reconhecidos espaços da fé: “o céu é superestimado, não há nada lá”, diz o fantasma da mulher do personagem, e logo, ao final, o monge troca seu templo sombrio por um quarto de hotel aconchegante, com vida. Assim também os animais carregam uma espiritualidade ciente e poderosa, capaz de estabelecer as mais diversas relações entre os mundos, sendo até mesmo agentes de contato e transformação entre eles. As fábulas contadas dentro filme reforçam tanto o inconformismo com as limitações e imperfeições físicas do mundo material, quanto o fascínio por outro modelo de existência. O macaco fantasma é um ser resultado desse encantamento por uma imagem mítica, onde só uma lente de câmera pôde registrar, lhe levando a ser o que buscava. Em outro momento a princesa se deixa envolver pela divindade que é a natureza graças a insatisfação com seu rosto, se entregando ao diálogo, a cópula com um bagre, elevando seu reflexo não mais do corpo, mas da alma, como era a que o rio lhe apresentava em sua margem no início da sequência. Em ambos os momentos é o questionamento da imagem seguido do ato sexual que definem a experiência da transformação, ou seja, elementos inerentes a nossa natureza. Essa importância animal como recurso mitológico e de contato com o mundo-além acaba espalhada por várias outras sequências através de insetos, vacas e macacos. Uma relação muito mais comum dentro da cultura oriental e africana.
Esses elementos estão alinhados com a busca por uma afirmação e reconciliação dos carmas, vidas passadas, mas com a própria história presente e com as pessoas que lhe deram sentido. O diretor Apichatpong Weerasethakul (tente repetir esse nome três vezes em voz alta) condicionou seu tempo narrativo a esse compromisso com a memória, espaço e eternidade em um tom extremamente consciente de sua projeção criadora de presenças, no fazer (re)enxergar em um mundo que não deixará de nos surpreender justamente pelo que cremos e duvidamos... Esse encontro entre as possibilidades (visível/invisível, carne/alma) na mesa de jantar parece o mais conciso ponto pra essa metáfora da presença, do milagre da luz, estabelecido através das duas cadeiras vazias à espera dos visitantes. Há uma serenidade comovente no personagem-título com seu modo de reagir ao aparecimento do espírito da mulher e do filho metamorfoseado em macaco fantasma. A cena provocou riso em meus companheiros de sessão, mas estávamos (rindo ou não) diante daquilo que se espera do cinema enquanto arma motivadora de encantamento, no sentido mais simples da expressão. Se a câmera trépida e uma lanterna podem nos guiar por uma gruta enquanto ouvimos o sonho do Tio Boonmee à beira morte, é porque nos entregamos a essa a crença de alterar a ordem do bruto do mesmo modo que a princesa ao rio, o tio a caverna, o homem a imagem que fotografou. Por isso que talvez, no início da sessão, quase involuntariamente segui o caminho da linha iluminada até a tela, numa tentativa de duplicar a experiência, enxergando algo mais que três pessoas vendo televisão (lá) e outras dezenas, ao meu redor, vendo um filme qualquer. "Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas" é um cinema ritual, holístico, de eterno retorno.
Luz do sol
Que a folha traga e traduz
Em ver denovo
Em folha, em graça
Em vida, em força, em luz...
C.Veloso
segunda-feira, 11 de abril de 2011
Entre o fim e o encontro - Finisterrae
terça-feira, 5 de abril de 2011
isso é pura carência mesmo
quarta-feira, 23 de março de 2011
Sobre obstrução e arbítrio
domingo, 20 de março de 2011
segunda-feira, 7 de março de 2011
A festa ou Os trépidos sons do chão
Era do chão que se podia ouvir o tamanho da festa. Interessante que qualquer um, mesmo de longe, poderia encostar o ouvido sob o solo e sentir como os pés da multidão ensurdecia todo o resto, colidindo-se insistentemente, desordenados em torno das luzes e sons que vinham do alto. Em cima o Rei, chamando todos os olhos da gente pra si como um enorme vaga-lume. O homem em destaque não ostentava uma coroa sobre a cabeça, mas gestos firmes, cantos, gargalhadas que pareciam ecoar do seu palco num tremor sísmico, fazendo com que toda imensa gente repetisse cada ato seu com um desespero alegre, ridículo, porém comovente. Cada fala, melodia ou movimento corporal era acompanhada por uma orquestra que tentava dar conta dos improvisos repentinos do Rei.
No nível mais baixo, claro, haviam ratos que de tão invisíveis chegavam em qualquer dos vários lados, mordendo pequenas migalhas caídas do alto, sendo notados apenas quando esmagados pelos pés agitados.
Já haviam dias que tal ciranda convulsa se entrelaçava entre risos e choros. Mesmo cansada de sede e suor aquela gente não dispersava, não sem que antes contemplassem o fim da festa, que diziam ser a melhor das partes. Alguns caiam desvalidos se juntando aos seres do chão em sua morbidez e invisibilidade. O Rei feio e grotesco ia alternando seu espetáculo com outras atrações como o Vesgo que assobiava valsas, a Bailarina que dançava o balé das estátuas de gelo ou o cachorro que nunca latia.
Depois da criança cinza que batia palmas ao contrário, o Rei, buscando surpreender seus milhares de convidados exaustos antes que sentissem uma peculiar monotonia, resolveu extravasar: tirou dentre suas pernas um enorme pedaço de carne tão crua que parecia ter sido arrancada ali mesmo. A gente toda se calou hipnotizada pelo brilho de pedaço morto ainda salpicando em sangue, que não se sabia ao certo de qual animal saíra. Observando a reação do seu público o Rei arregalou os olhos ainda mais vermelhos com um desejo que lhe fez externar sua língua roxa, desfilando-a por pelo menos quinze centímetros na superfície da suculenta carne... Viu toda aquele gente agitando-se ainda mais, berrando num coro que fez toda a orquestra parar instantaneamente.
Exposta, exibida em riste, apodrecendo em minúsculos vermes famintos, a carne se mantinha presa firmemente entre os dedos do Rei, que lentamente iam se abrindo, um a um, em um ato solene de tão lento. A multidão já se amontoava em cabeças de bocas abertas tentando não desperdiçar nem os mínimos líquidos viscosos que dali escorriam. Pena não haver aí qualquer pintor ou câmera capaz de registrar o tal pitoresco instante, menos ainda havia quando finalmente se foi pelo ar a carne por entre o povo que lhe esperava impaciente. Pouco se pôde saber a partir daí além que aquela gente se meteu em apertos insuportáveis em troca de pelo menos uma lasca da carne que de tamanha confusão se mesclou aos ratos, pernas, pés, ou qualquer tecido vivo que os dentes pudessem segurar. As pessoas foram se amassando, mordendo, se rasgando e mastigando por horas e horas até que tudo virasse uma mesma massa desforme, largamente espalhada em tons de cores irreconhecíveis.
E o Rei depois de muito esperar, protestar atenção e dormir, se viu só, tão só que se despiu e gritou forte pra sinalizar - como se necessário – o término daquilo que continuavam a chamar de “a festa”, talvez por falta de termo mais adequado e historicamente aceito. Aqueles que comentavam e ouviam tudo através dos trépidos sons do chão finalmente se ergueram e seguiram suas vidas até a próxima vez onde quem sabe, com esperança, poderiam participar não apenas com os ouvidos, mas com todas as próprias carnes.
Tamanhos sacrifícios nem mesmo Deus aguentara mais ver e gostar.
terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
Em um quarto de uma vida bagunçada

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
Cisne Negro e a crença no orgasmo cinematográfico

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011
O sonho da casa vazia
Untitled from Ramon Coutinho on Vimeo.
terça-feira, 18 de janeiro de 2011
Ressonância (ou sobre a simples dificuldade de perceber)
Eu aqui, fico tonto de tanta coisa capturando minha atenção, carente de sentido. É inútil tentar domar as palavras, quando vêm em revoada, melhor torcê-las do lado avesso. Divago sobre o caminho que percorrem, silenciosas, enquanto esperam pra se derramarem bêbadas, bêbadas de adjetivos.
Uma menina que não conheço me sorri de longe vários sorrisos, me chama pra vê-la dançar num dia nublado na praia. Uma outra menina a quem desejo um bom dia, retribui, e ganha um beijo escondido... Uma terceira me embaralha as ideias, me faz procurar uma estrada pra voltar.
Parece que acabou, mas vou fingir que não. Tem tanta coisa escondida da janela pra fora, mas é só daqui que as enxergo.
por:leo coutinho
quarta-feira, 5 de janeiro de 2011
um testemunho do distanciamento
Quis filmar seu redor, só...
Demorou duas semanas até achar que aquilo tinha algum sentido. Foi em seu último dia que acordou antes do sol e saiu com uma câmera velha. Lentamente foi pescar imagens daquele lugar que não sabia quando voltaria a ver. Começou pela janela, daí pra grama, pros próprios pés, folhas molhadas soltas no ar, ruídos aleatórios fundamentais pro início de qualquer último dia.
Apenas através do aparecimento gradual da luz as coisas pareciam realmente revelar-se, talvez por aquele olhar ter ganhado também aos poucos uma pequena intimidade para que daí sim poder mais que ver, reparar, conceder um pedaço a mais de memória, na verdade extensão artificial onde a cena guardada em frames poderia chegar num futuro próximo a outros, olhos, impressões.
Descobriu um lago ali logo atrás onde jogou uma pedra no meio e esperou que as pequenas ondas formassem um grande alvo como se a espera do apontar certeiro da lente da câmera. Ficou pensando depois do click que poderia ser ele mesmo feito daquilo - uma imagem besta de 13 segundos – um lago qualquer que não sabia ao certo a própria profundidade, reagindo lento a uma pedra largada em seu meio.
Ia seguindo assim atrás de pequenos movimentos que nada tinham de realmente extraordinários, porém tradutores, como sintomas do que inconscientemente sentia. Um ciclista distante, uma casinha fechada... Filmou também três cães sujos caminhando juntos como se pra um encontro marcado, parando e cheirando, sempre se reagrupando. Um último cão pardo mais desinteressado no improvável encontro, se distanciando dos outros de repente percebeu (diferente do resto) aquela presença de olhos cansados... Começou a segui-lo, ele, a câmera. O cachorro agora apartado do grupo parecia quase um guia, melhor, também personagem daquela história esquisita, mesclada sob a ilusão dos sonhos, memórias e mais um pouco de tudo que não se consegue palavras pra se organizar.
Toda essa parafernália de pequenas ações captadas foram devidamente salvas e transferidas, convertidas, editadas, no entanto não tardaram a seguir a lógica que rege toda essa fatídica ordem... Em outro dia, que ainda não se sabe qual, se perderam, esquecidas sem qualquer cerimônia, viraram enfim ausência, sem futuro próximo a outros olhares. Corroídas em som e vídeo surgem agora apenas depois que tapados os olhos - sob a proteção de Mnemósine - inventando diálogos em outros formatos, caminhos.
“Deixemos que tudo seja simplesmente aquilo que em essência veio ao mundo cumprir como principal função... ir-se, passar.”