terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Em um quarto de uma vida bagunçada

Era uma vez uma verdade que eu tentava evitar... Sobre meus pés havia um reino de inutilidades unidas por fibras de celulose salpicadas com densas camadas de poeira. Eram provas, cópias, revistas, cadernos e todo tipo de coisa que se empurra num canto propício ao esquecimento, mesmo crendo que estava aos poucos montando um arquivo digno em um quarto de uma vida bagunçada. Não quis mais me apegar naquela desculpa de que pessoas muito organizadas sofrem algum tipo de sentimento de culpa ou trauma infantil. Era momento de se impor sobre aquele caos organizado em pastas e envelopes de cores variadas, casa dos tipos mais estranho de aranhas menores. Mesmo protegido por máscara, luvas e anti-alérgico quase entrei em fase de arrependimento quando me dei conta do tamanho da responsabilidade que a empreitada exigia. Ler, selecionar, descartar, agrupar... Nunca estive tão próximo das leis que regem a arquivologia. A cada folha conferida ia me perguntando revoltado a razão de um dia ter achado aquilo realmente necessário pra estar ali guardado. Impiedoso como Ganesha - o removedor de obstáculos - fui preenchendo sacos plásticos com todo desnecessário que estava cercando por anos meu desenvolvimento material/espiritual, e pior, sem que eu me desse conta disso.

É, o que serviu nem sempre serve pra sempre.

Pequenos exemplos das mudanças tecnológicas iam ressurgindo, demarcando uma jovem velhice que ganha forma através do culto de objetos obsoletos. Eram clássicas fitas-cassete, alguns disquetes, cd's e tudo que já deixamos pra trás em troca de um mínimo pendrive. Não podia me iludir, a tecnologia não me salva nem salvará ninguém!
Uma batalha silenciosamente era travada naquele mesmo piso de madeira retangular: em um canto do quarto um belo montante de xerox de clássicos textos (Thompson, Galeano, Engels, etc), pedaços de livros e teorias que eu certamente não iria reler X no outro canto livros ainda não lidos, carentes de atenção, mas que eu não sei se vou ler.

Aos poucos aquele cenário conturbado foi se transformando num pequeno templo de relaxamento, leveza, próprio pra canções e mantras védicos em nome do desapego. "Hainana hari hari vaiprala, hainana hari hari fikqui". Fotos, cartões de banco, uma bola de gude, fios, sapatos, postais. Tanta tralha representava bem a necessidade de reciclar um passado diante de um presente que exige mais espaço pra fluir. Daí que uma constatação óbvia firmou-se sobre meu suor: preciso dessa habilidade do desacúmulo pra mudar. O desafio é maior que deslocar, desfazer, mas recriar movimento a favor dessa mutação inevitável.

"Hainana hari hari vaiprala, hainana hari hari fikqui"

Uma revolução parece sempre começar assim mínima, pelos cantos, nos quartos e em suas bagunças que lentamente nos organizam pra guardar e modificar.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Cisne Negro e a crença no orgasmo cinematográfico

Terminado o filme esperei os créditos acalmarem os nervos e a pausa certa entre a respiração. Confirmei que Aronofsky acredita fielmente em um tipo de orgasmo cinematográfico. Suas tramas se desenvolvem nessa crença em que todas as forças devem se direcionar para um momento, sendo todo o restante anterior do filme mera justificativa para que a catarse final jorre livre e soberba. Em toda sua filmografia - "π (Pi) ", "Réquiem para um sonho", "Fonte da vida", e de um modo mais equilibrado em "O lutador"- há essa mesma obsessão pelo "grande fim".
Acostumado a tais dramas masculinos o diretor se aventura agora em um conto de fadas trágico, tentando um mergulho na persona da frágil bailarina. Se tal escolha parece nobre por outro lado acaba também exibindo a incapacidade dos artifícios utilizados pelo roteiro em garantir a densidade necessária à história nos momentos secundários. As incontáveis tensões-seguidas-de-sustos e confrontos com o espelho se repetem como se o diretor e os roteiristas não quisessem ou pudessem apostar totalmente em uma dramaturgia psicológica mais densa, capaz de usar o tempo a favor das imagens, das revelações, ou ainda melhor, das dúvidas sobre os personagens. Essa proximidade com as fórmulas que a maioria do cinema atualmente se apóia acaba esbarrando com o que diretor conseguiu de melhor em seus filmes anteriores. Como em "π (Pi)" a câmera na mão, trépida se envolve no caos interno da personagem, tornando cada movimento - principalmente nas cenas de dança - uma extensão do corpo. Essa variação entre formalismo batido e talento acaba mantendo o filme em linha horizontal por um bom tempo.
"A única pessoa que está no seu caminho é você mesma" - Há momentos em que um certo didatismo parece querer entregar todo o conflito contido em Cisne Negro, que não tarda a demonstrar que não importa tanto qual verdade ganhe a tela, mas justamente onde e como ela irá surgir. Esse compromisso com o momento é o acaba limitando por vezes a potência discursiva do filme e de como ele quer nos levar até .
Todo o entorno da personagem é explorado através de diversas pistas e referências psicanalíticas, onde por trás da mãe super protetora há uma vilã em potencial contra sua autonomia, do mesmo modo como a colega de balé é rival para o seu grande objetivo de ser a principal dançarina do clássico Lago dos cisnes. Thomas (diretor da companhia de balé) é a mescla da figura paterna e do príncipe que Nina nunca teve e que por isso anseia por alguma atenção/aprovação desesperada. O balé, além de forte elemento estético, ilustra a alegoria da disputa entre as contradições que cercam o mundo de Nina - dor e beleza, leveza e rigidez, a arte e o modelo de perfeição - lhe pressionando não pra fora, mas contra si mesma.
Assim a questão não é tanto se a personagem é vítima de si ou do contexto em que está exposta, mas principalmente de como ela sairá dele. Seu conflito é antes de tudo um grito do corpo (como na história do lago dos cisnes), da necessidade inconsciente de quebrar uma estrutura repressiva mesmo sem entendê-la. Dessa angústia o palco em vez de espaço de redenção se converte em arena de sacrifício, as palmas são como um coroamento da metamorfose, do descobrimento... A consciência de si elevada a emoção máxima, única e irrepetível.

Cisne Negro transborda tudo até não sobrar mais que um silêncio atônito que se permite quebrar com apenas uma ordinária e subliminar pergunta: foi bom pra você?

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O sonho da casa vazia

outro dia sonhei que você me visitava
me contava suas notícias no ouvido
gargalhava as melhores memórias
e o receio da distância forçada

sonhei que naquele fim de tarde
havia tempo pras coisas descansarem
esticar os braços pra cima, nas folhas
nos cantos partilhados

caminhamos com um vento leve,
quase raro ultimamente.

eu tive um sonho onde chegava aquela carta sua
cheia de rasuras e reticências
li essas letras explicando o sumiço
a razão, o estado da vida apressada
diminuída...
no fim você desenhou uma árvore alta
parecida com a que plantamos juntos no quintal

depois de assinar você disse que estamos
sempre voltando pra casa...
é. acho que é isso mesmo

foi bom, mas tão pouco;