terça-feira, 21 de julho de 2009

Um cinema de conflitos - "A festa da menina morta"

O cinema suporta qualquer dor. Melhor dizendo, o cinema é o espaço por excelência da diluição da dor... E quando a dor, de tão grande, estraçalha essa estrutura diluidora, o cinema deixa de articular, entra em estado de pânico ou de afasia, agônico. – Carlos Diegues

Provocar o espectador custa caro, e algumas vezes também é tarefa nobre. Há filmes que praticam tal risco de uma forma tão certeira que nos deparamos com uma quase embaraçosa ausência de juízos de valor bem definidos, o que nos faz obrigatoriamente inclinar sob uma das possibilidades: o silêncio matutante e inquieto, ou a necessidade em preencher tal incômodo com uma qualificação rápida, acabando logo com maiores prolongamentos ou possibilidades mais exigentes. Ao final de A festa da menina morta eu rastreava definições, e dessa agonia percebi que justamente da ausência destas que o filme parece buscar algum valor. Definir pra que mesmo?! Eis que tal descompromisso lhe impregna de um caráter contraditório tanto por impulsionar, como por muitas vezes distanciar o espectador. Em sua primeira empreitada como diretor Matheus Nachtergaele largou sua pedrada com um gosto amargo e desconcertante. Ao mesmo tempo em que buscou originalidade temática e geográfica, bebeu de fontes já conhecidas do cinema contemporâneo. Os contornos dramáticos e a estética virulenta de Claudio Assis (Amarelo Manga/ Baixio das Bestas) estão lá, claramente estampados nos enquadramentos perturbadores e belos de Lula Carvalho.
A diversidade do roteiro, que se ergue principalmente na religiosidade ribeirinha entroncada com a incestuosa relação pai/filho, torna superficial qualquer simplificação. Os simbolismos dos corpos, da natureza amazônica reinante (o rio abissal, a mariposa inquieta, a galinha ensangüentada, o berro do porco), dos objetos (o vestido da menina morta), caminham juntos pra compor a narrativa desse universo cinematográfico denso, angustiante, quase impróprio. E o risco de cair no folclórico, no exótico bem lustrado já tão explorado no cinema nacional parece tentador quando se trata de focar realidades não-urbanas, aqui, no entanto essa apelação escapole por não tentar enquadrar a celebração religiosa em explicações ou motivos. O que rege o filme parece ser a perseguição angustiada daquelas pessoas por um encantamento maior contra um vazio que tanto oscilam e temem em cair... E dessa busca todos padecemos, cada um a seu modo. Nachtergaele opta por um cinema de conflitos, que consagra a tensão constante, onde os atores parecem náufragos em seus personagens, concebidos dentro de uma concepção clara e recente de ficção impregnada por traços documentais. Temperamental, andrógeno, fútil com suas coroas de milagreiro, o personagem de Daniel de Oliveira perde consistência quando reflete diretamente ao modo de atuação de seu diretor. Os personagens mais intensos parecem ser justamente aqueles que estão nas arestas, que aos poucos revelam suas fraquezas, seus delírios, colocando argamassa no todo. As longas cenas, sem cortes, dão a trama um tom guiado por uma trágica dinâmica teatral, que alcança e sufoca mais desprevenidamente os ocupantes das poltronas da sala de cinema, que de susto parecem reagir as vezes com espasmos gargalhantes nas cenas mais absurdas, sem significados óbvios. Aqui não acharemos nada óbvio, e isso tanto pra o lado das cenas em que o excesso gratuito cansa e prejudica (os xiliques do Santinho, o delírio do Padre), como nos momentos em que a espontaneidade dos diálogos e situações garante um fôlego mais envolvente (a velhinha que conversa com a boneca, ou o índio reclamando com a mulher na cozinha).
Assim como Feliz Natal de Selton Melo, Nachtergaele parece movido por uma inquietação artística ainda maior, da qual seus papeis e carreira bem sucedida não davam mais conta. Ambos os atores, agora também diretores, movidos por tanta fome cometem exageros em suas películas, mas com tanta vontade acabam também criando momentos enriquecedores, bonitos, provando o quanto sabem contar histórias, e partindo da dor, da abertura das feridas para solidificar suas intenções.
O espectador que se contentar com a segunda inclinação do início do texto desvie o olhar até mesmo do cartaz, há uma centena de filmes que se enquadram ou não exigem mais que um “bom”/ “ruim”, duas ou cinco estrelas. Sem conforto algum, A festa da menina morta exige um tempo maior, para além da projeção, apontando pra opções mais numerosas, não apenas pra si, mas pro cinema movido mais do que por seus prodígios técnicos, mas por carregar uma essência, uma alma. Essa ânima só será exorcizada e aí sim definida se a coragem e a consciência crítica permearem ambos os lados da tela.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

outras nações


"Nós precisamos de um conceito mais novo, sábio, e talvez mais místico dos animais. Longe da natureza e vivendo através de artifícios complicados, o homem na civilização vigia as criaturas através do vidro do seu conhecimento e vê portanto, os detalhes de uma pena mas uma imagem geral distorcida. Nós os patronizamos por serem incompletos, pelo seu trágico destino de terem se formado tão abaixo de nós. E nisso nós erramos gravemente. Pois os animais não podem ser avaliados pelo homem. Num mundo mais velho e mais completo que o nosso eles se movem completos e confiantes, dotados com extensões dos sentidos que nós perdemos ou nunca possuímos, guiando-se por vozes que nós nunca ouviremos. Eles não são irmãos, eles não são lacaios. Eles são outras nações, presos conosco nesta vida e neste tempo, prisioneiros do esplendor e trabalho da terra."
The Outermost House, Henry Beston

sexta-feira, 10 de julho de 2009

criatura da noite

Lembro quando fixava os olhos na fresta da porta entreaberta do meu quarto, imaginando que a qualquer momento as coisas mais terríveis pudessem lentamente surgir pelo batente. Minhas noites infantis não eram diferentes das de outras crianças que começam a entender o mundo, algumas de suas complicações. A cada barulho noturno, cada estalo que a geladeira pontuava lá estava eu crendo que esses eram sinais da proximidade dos tais seres. Extraterrestre era algo que me arrepiava o juízo e todos os meus poucos pêlos... Havia uma moda televisiva na época de repetir os relatos de raptos e aparições, seguidos das descrições perfeitamente ilustradas: cabeça grande, corpo fino e branco, boca e nariz mínimos, (e a pior de todas as características) olhos negros, enormes e brilhantes. O Globo Repórter e o Fantástico não têm idéia de quantas mentes traumatizou com sua falta de assuntos e pautas mais dignas.
Fui inventando várias artimanhas para chamar a atenção dos meus pais, que não demoram a perceber que não havia nada nas minhas tosses secas além da falta de coragem de admitir o medo. Cheguei a temer as aparições de Nossa Senhora, que ela quisesse revelar os segredos do mundo pra mim. “Me libera Maria, me libera.. Eu não mereço!”. Rezava pedindo perdão a deus por isso, mas era medonha a imagem do rosto neutro, límpido, emanando luz e paz envoltas em um véu de cores pastel vindo em sua direção no meio das nuvens... Credo!
Foi aí que comecei a desconfiar que algo de estranho havia nisso tudo. Deparei-me com poucas alternativas: a loucura frustrante ou a invenção criativa... Acho que me alimentei de um pouco de cada. Desse hibridismo fui tomando gosto pela noite, achando outros barulhos e silêncios, percebendo que havia enormes possibilidades antes de fechar os olhos pra contabilidade caprina. Conversas demoradas, desenhos toscos, fitas VHS, livros, poesias caóticas, fones de ouvido. Acredito que me moldei principalmente através desse trovadorismo noturno, dessa hora melhor pra achar que tudo pode ser inventado... Sem medos!

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Tudo que está estagnado

Saia de mim vomitado,

Expelido,exorcizado


Tudo que está estagnado


Saia de mim como escarro
, Espirro,
pus,
porra,
sarro,
Sangue,
lágrima, catarro.

(arnaldo antunes)