quarta-feira, 23 de março de 2011

Sobre obstrução e arbítrio

"Bom dia, por favor, você sabe se aqui reconhece firma?". Eram oito e meia da manhã e eu não estava mesmo afim de fazer aquela pergunta, tamanho nível desagradável de risco que ela representava. Atravessei a carcomida porta amarela do cartório com uma cara de espanto e busca por uma humilde senha - símbolo maior da passividade - e me sentei naquela que seria minha cadeira nas próximas horas. Longas horas... Tudo por causa de uma coisa de nada de uma assinatura.
Há um clássico filme cubano que conta a história de como enlouquecer com a burocracia. "Morte de um burocrata" foi o filme em que Titón quis simbolicamente matá-la, tamanha era sua monstruosidade. O processo de reorganização da sociedade cubana no pós revolução não parece em nada com a nossa caótica bahia de sempre... A não ser claro, pelo instinto assassino que papéis, autenticações, declarações, e toda essa coletânea de pequenos ingressos para o purgatório nos causam em manhãs de terça-feira. Me senti na película, mas pior, sem o humor que tanto a caracteriza e amplia sua crítica.
Trinta era o número que eu era ali. Um número atrás de vinte e nove outros que precisavam também provar algo, mas que acordaram mais cedo, chegaram mais cedo, atravessaram a carcomida porta mais cedo. A atmosfera do lugar era uma enorme concentração de energias em processo de intenso desgaste. Testas contraídas, pés marcando como um ponteiro de relógio, olhos pulando de canto em canto, de cena em cena, num voyerismo coletivo e atroz que espera, mas nunca sabe quando aquilo irá se resolver. Bigbrothers de nós mesmos muitos convertiam suas tensões em conversas amenas e inúteis, enquanto outros, em uma fúria peculiar e interna, se calavam pela falta de capacidade de articular uma revolta contra tanto emperramento. Creio que são nesses momentos que o organismo não consegue se auto defender por estar gastando toda a energia em controlar o cérebro, e aí que aqueles pontos de gordura tem espaço e começam minimamente a obstruir uma artéria, uma célula ruim a se multiplicar, uma ferida começa a irritar, a perna a coçar, o juízo a se deslocar.
Ali logo a frente, no balcão, uma pessoa - que não tinha número - atendia todo esse tudo com a cara de quem tem que aguentar aquilo por horas e horas todos os dias. A única, única pessoa que ali atendia parecia justamente a que mais havia perdido a capacidade de diferenciar educação e maldade, seja no tom de voz, seja no modo de lhe olhar, negar, confirmar. Tudo era dito de uma só e rasteira maneira. Nesse momento percebi que não é apenas o caos que selvageriza as pessoas, mas também essa burocratização que crê tanto si, e em sua função primordial de organizar o mundo. "Isso aqui é inferno" sentenciou um senhor alto e negro com olhos de desilusão. Mesmo sabendo que há, não quis imaginar o que é mais inferno que aquilo, justamente porque, francamente, corria sério risco de me tornar como aquela única, única pessoa que atendia todo mundo naquele balcão.
Havia uma incrível dinâmica de troca de senhas e modos de burlar a tal burocracia, coisa que só pude observar, resignado por minha inexperiência em tais manhas do mundo das filas e esperas. O número de gente atordoava: iam e voltavam, perguntavam, erravam de porta, voltavam, tiravam cópia, tomavam espaço, lamentavam o fim das senhas, interrompiam o atendimento e faziam tudo outra vez... Comecei a meditar e elevar minha cabeça pra uma rua vazia, clara, longa em que corria livremente com uma marreta nas mãos, derrubando postes e destruindo carros, tocando campainhas e fugindo. Pouco antes de subir em uma árvore fui interrompido por uma voz intrusa que me perguntava em qual número/senha estávamos... "13", "15", "15", "17". Em menos de dez minutos essa mulher me perguntou quatro vezes saindo e entrando no lugar com uma cara suada e tonta de quem estava já se perdendo na própria incapacidade. Comecei a pensar nesse texto, imaginei frases e caracterizações, mas logo me dei conta de sua inutilidade como testemunho, pobre e infértil na tentativa de enfrentar as normas através das palavras. Seria óbvio demais mais um texto que resolve falar mal das coisas que atrapalham as ações de seu autor.
Só o ônibus que peguei pra chegar em casa me fez mudar de ideia. Ali, em mais um coletivo, encostando minha perplexidade e cansaço num banco plástico, sem conseguir enxergar muita coisa além do ardor solar sob meus olhos, pude contemplar a desesperança que me acompanhou até poucos pontos antes do meu. Quatro horas e meia de escuridão eram demais pra um espírito que se pretende algo mais que simplesmente ter que se acostumar a sobreviver... Não, não podemos! Um dedo de repente encostou sob a bandeira chilena pregada em minha mochila, fazendo comentários que mal pude entender no princípio. Era o cobrador, sorridente comentando que gostava do Chile por sua história, sobre Allende e outros míticos personagens sul-americanos. "É com algumas pessoas que a gente vê o quanto a gente faz pouca coisa né...", comentou logo depois de citar Che. Eu apenas respondia e comentava, observando sua vontade e entusiasmo de falar com alguém que lhe permitia algum diálogo, mais que apenas comentar sobre o tempo. Foi uma pequena conversa, mas fiquei surpreso, não pela sabedoria ou pela espontaneidade do cobrador sorridente ao falar sobre tais assuntos, mas pelo choque que o mundo é capaz de provocar numa mesma manhã. Se por um lado ele nos entorpece de desgosto, por outro nos conduz a acreditar que somos mesmo uma força espontânea que é antes tudo fluxo que obstrução, mais arbítrio que subjugação. Então, foi alguma perda da memória coletiva que nos fez assim?!
Esquecidos ou não, sei que preferi ficar com o segundo ato daquele dia, que já iniciava sua tarde.

Por enquanto acho melhor colecionar, por via das dúvidas, alguns desses pequenos momentos de choque pra que nem tudo fique a mercê dessa irresponsável memória que nos sobra.

Ps: Artérias liberadas, células em bom estado, pernas sem coçar e juízo em plena soltura...


domingo, 20 de março de 2011

segunda-feira, 7 de março de 2011

A festa ou Os trépidos sons do chão

Era do chão que se podia ouvir o tamanho da festa. Interessante que qualquer um, mesmo de longe, poderia encostar o ouvido sob o solo e sentir como os pés da multidão ensurdecia todo o resto, colidindo-se insistentemente, desordenados em torno das luzes e sons que vinham do alto. Em cima o Rei, chamando todos os olhos da gente pra si como um enorme vaga-lume. O homem em destaque não ostentava uma coroa sobre a cabeça, mas gestos firmes, cantos, gargalhadas que pareciam ecoar do seu palco num tremor sísmico, fazendo com que toda imensa gente repetisse cada ato seu com um desespero alegre, ridículo, porém comovente. Cada fala, melodia ou movimento corporal era acompanhada por uma orquestra que tentava dar conta dos improvisos repentinos do Rei.

No nível mais baixo, claro, haviam ratos que de tão invisíveis chegavam em qualquer dos vários lados, mordendo pequenas migalhas caídas do alto, sendo notados apenas quando esmagados pelos pés agitados.

Já haviam dias que tal ciranda convulsa se entrelaçava entre risos e choros. Mesmo cansada de sede e suor aquela gente não dispersava, não sem que antes contemplassem o fim da festa, que diziam ser a melhor das partes. Alguns caiam desvalidos se juntando aos seres do chão em sua morbidez e invisibilidade. O Rei feio e grotesco ia alternando seu espetáculo com outras atrações como o Vesgo que assobiava valsas, a Bailarina que dançava o balé das estátuas de gelo ou o cachorro que nunca latia.

Depois da criança cinza que batia palmas ao contrário, o Rei, buscando surpreender seus milhares de convidados exaustos antes que sentissem uma peculiar monotonia, resolveu extravasar: tirou dentre suas pernas um enorme pedaço de carne tão crua que parecia ter sido arrancada ali mesmo. A gente toda se calou hipnotizada pelo brilho de pedaço morto ainda salpicando em sangue, que não se sabia ao certo de qual animal saíra. Observando a reação do seu público o Rei arregalou os olhos ainda mais vermelhos com um desejo que lhe fez externar sua língua roxa, desfilando-a por pelo menos quinze centímetros na superfície da suculenta carne... Viu toda aquele gente agitando-se ainda mais, berrando num coro que fez toda a orquestra parar instantaneamente.

Exposta, exibida em riste, apodrecendo em minúsculos vermes famintos, a carne se mantinha presa firmemente entre os dedos do Rei, que lentamente iam se abrindo, um a um, em um ato solene de tão lento. A multidão já se amontoava em cabeças de bocas abertas tentando não desperdiçar nem os mínimos líquidos viscosos que dali escorriam. Pena não haver aí qualquer pintor ou câmera capaz de registrar o tal pitoresco instante, menos ainda havia quando finalmente se foi pelo ar a carne por entre o povo que lhe esperava impaciente. Pouco se pôde saber a partir daí além que aquela gente se meteu em apertos insuportáveis em troca de pelo menos uma lasca da carne que de tamanha confusão se mesclou aos ratos, pernas, pés, ou qualquer tecido vivo que os dentes pudessem segurar. As pessoas foram se amassando, mordendo, se rasgando e mastigando por horas e horas até que tudo virasse uma mesma massa desforme, largamente espalhada em tons de cores irreconhecíveis.

E o Rei depois de muito esperar, protestar atenção e dormir, se viu só, tão só que se despiu e gritou forte pra sinalizar - como se necessário – o término daquilo que continuavam a chamar de “a festa”, talvez por falta de termo mais adequado e historicamente aceito. Aqueles que comentavam e ouviam tudo através dos trépidos sons do chão finalmente se ergueram e seguiram suas vidas até a próxima vez onde quem sabe, com esperança, poderiam participar não apenas com os ouvidos, mas com todas as próprias carnes.

Tamanhos sacrifícios nem mesmo Deus aguentara mais ver e gostar.