sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Sobre uma noção do incompleto - INULAT

"A sensação aventureira dominava as vozes e os olhares já há alguns metros depois do ponto de partida. Era uma empolgação unida, partilhada junto ao calor de Janeiro...''

"Era uma cidade feita da urgência de se vender, não importando de que maneira. Me pareceu uma sátira de si mesma..."
"Foi observando meus passos na escada do albergue até a estátua do herói no meio da praça que percebi o quanto tinha, da melhor maneira, ido longe demais..."

Das minhas pequenas notas quis lembrar tudo, e por alguns instantes isso me pareceu a pior das angústias. Registrar, escrever, filmar e fotografar como se o mundo todo fosse sumir no dia seguinte. Essa fome de tudo me persegue desde os primeiros momentos e metros percorridos pelo ônibus colorido que carrega nossa caravana... Desde as grandiosas cachoeiras de Foz do Iguaçú até os detalhes, pequenas sensações e conversas impossíveis de se captar, todas parecem precisar da mesma atenção para que se consiga dar conta de guardar tudo aquilo que é, por excelência, irrepetível. Desse desafio, a relação espaço/tempo vai se desdobrando por uma outra lógica, múltipla: duas semanas parecem dois meses, um lugar abarca vários outros. Milhares de quilômetros tragando paisagens, pessoas, desenvolvendo relações e reconhecendo nossa ignorância, salva graças ao encantamento compartilhado por uma América do Sul de tantas realidades, conhecida até então só através das palavras, poemas, estudos e imagens.

"- Para os europeus a América do Sul é um homem de bigodes com um violão e um revólver - Justificarbrincou o médico rindo sobre o jornal. - Não entendem nossos problemas." Virados de costas, nem mesmo criamos essa superficial imagem dos nossos vizinhos, aliás a concorrência com o futebol argentino talvez seja a nossa maior referência sobre o resto do continente. Assim, tão distantes das veias abertas que Galeano pretendeu revelar, não chegamos nem na epiderme desse povo que Gabriel García Márquez também tanto se ocupa. Fico agora me perguntando o que pensava antes sobre o Paraguai ou sobre o Uruguai, e o que imagino dos outros países que irão recepcionar meus ansiosos passos. Esse exercício - do antes e depois - acaba transformando a estrada num espaço de integração não só através das travessias físicas, mas sobretudo por entre as fronteiras internas, que mais que carimbos e vistos, necessitam de um olhar atento e equilibrado para os movimentos externos e coletivos, próprios e sutis.
Contraditoriamente a quantidade de experiências de uma viagem tão incrivelmente audaciosa dificultam um relato mais minucioso... É como se o tempo pra isso devesse ser mesmo póstumo.
"Ah, antes de tudo viver", pensei enquanto folhava minhas anotações bagunçadas, direcionando em seguida o olhar para as pessoas ao redor, acompanhantes de expedição, empolgadas pelas expectativas, vontades e risadas. A angústia de exigir tanto das memórias (fotos, vídeos, papéis e canetas) um registro absoluto do que via e sentia foi se alternando aos poucos para uma leveza alimentada pela noção do incompleto, como numa obra de Rodin. Provavelmente será dessa sensação do inacabado que o dia seguinte não se fará pelo finitude, mas pela... pela...
Sigamos adelante!
(...)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

o velho desejo frustrado do novo

No céu do primeiro dia no ano as espessas nuvens tinham formatos de enormes caravelas, se moviam lentamente em nossa direção como se empurradas pela insistência habitual dos raios solares. Aquela luz, aparentemente impreganada de sentidos especiais, iluminou a areia da praia, revelando distintamente os corpos de casais dormentes dos que queriam presenciar mais intensamente a sensação do novo, completando assim, quem sabe, ainda mais esse sentido, iniciado pelos fogos de artifício queimados à meia noite. No chão, enquanto as sombras eram cada vez mais escurecidas pelo amanhecer, alguns empolgados se largavam nas ondas fortes do mar, enquanto outros levantavam tortos e ressaqueados, apertando os olhos, bocejando forte... De repente, não muito longe, gritos e xingamentos eram cuspidos entre familiares, brigando por alguma qualquer razão desconhecida, chamando a atenção dos mais próximos. A beleza do crepúsculo se dissipava, dando ao desenrolar do dia um peso estranho. Na rua um homem arrasta suas malas embriagadamente enquanto uma mulher lhe persegue, suplicante. O branco da areia carregado de um colorido sujo pelas embalagens plásticas e garrafas esverdeadas de espumante vazias, parecia ajudar a enxergar a contraditória lógica na qual a maioria das pessoas está inserida, seja no velho, seja no novo. Pescando do céu as luzes que possam representar as possibilidades e desejos das coisas boas e felizes, praticam no chão um mesmo e velho caos de sempre, capaz de superar tranquilamente os abraços, sorrisos, saudações e promessas que marcam pontualmente o fim e o início de cada ano. Pela tarde a música das caixas de som se auto impludiam alucinadamente, misturadas as tumultuadas tentativas das pessoas se moverem, colidindo-se, disputando seus pesos e medidas, tentando voltar pra casa em ônibus, carros e motos. Eram hordas enfurecidas que pareciam nem sequer imaginar qual razão que comemoravam aquilo. O primeiro dia do ano lhes serve muito bem como possibilidade de vislumbrar e ensaiar algo novo, mas que nunca é realmente concebido... Talvez seja esse desejo frustrado, malogrando em promessas, que acabe por empurrar os sujeitos pra um modo mais caótico de se fazer, sentir e falar. Eis que revelamos aí, de modo apoteótico, o quanto festejamos nossa incapacidade e mesmice saturada de cada resto de ano.

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Ao que parece, quanto mais nos aproximamos das transformações internas, experiências deslocadoras e intensamente sinceras, cativantes, mais toda essa majoritária e agoniante realidade salta aos olhos, choca, atordoa, ao mesmo tempo que clama também por alguma interferência reagente. Conviver com essa responsabilidade é mover, propagar e integrar as idéias aparentemente mais absurdas, impossíveis.


"A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar". Las palabras andantes‎ - Página 310, Eduardo Galeano