Cala boca Salvador!
Um filme de:
Ramon Coutinho
Joelma Gonzaga
Francisco Gabriel
Atores:
Paulo Rios Filho
Vitor Rios
Artur Rios
Ramon Coutinho
Em junho estava em uma ilha que não era minha quando soube que Saramago havia morrido em sua ilha... depois de um primeiro momento lamentando recordei repentinamente de uma frase sua que possibilitou ressignificar minha reação com aquele fato: "Nossa maior tragédia é não saber o que fazer com a vida". Assim simples, ergui meus pensamentos sobre a morte de Saramago através da celebração de suas palavras e inquietações, pelo modo como fez sua existência tão plena de valores. Tal perspectiva fez ainda mais sentido quando me deparei com"José e Pilar", documentário com pouco mais de duas horas que segue o íntimo universo do autor nos seus últimos anos de vida. O título não poderia revelar melhor a intenção do cineasta Miguel Gonçalves Mendes. São os primeiros nomes que lhe importam, ou seja, se aproximar dessas duas pessoas e sua intensa relação, acima de qualquer mito. Pilar del Río, até então discreta nas dedicatórias dos livros do escritor, nos surge como personagem indispensável nessa história entrelaçada em tantas outras. José com idéias para os livros, Pilar com as idéias pra vida, se comprometendo um para o outro e com tantas árduas tarefas de quem escolhe ver e reparar em um mundo que se cobre de cegueira. Como o elefante do seu penúltimo livro, eles seguem uma longa trajetória, aliás várias, pelos quatro cantos pra também se fazer ouvir, ver e se comunicar para além dos livros. Entendemos aí a capacidade de ambos em interagir com tamanha firmeza e simplicidade com a câmera e com seu espaço cênico. As montanhas, "a casa", a trilha sonora e os ventos vão nos conduzindo suaves para densidade dos depoimentos, das pequenas conversas, críticas e reflexões sobre Deus, democracia, tempo.
A Saramago sempre interessou a prática do pensador ativo e inquieto com o modo que as coisas levianamente se reproduzem. Se ele deixa a ilha de Lanzarote, seu refúgio, é em nome desse caro trovadorismo, que chega a comprometer sua saúde, concedendo ao filme um dos seus elementos narrativos mais ricos: um escritor que escreve pra viver e que vive pra sua companheira. Mais que isso, uma pessoa que perseguiu a beleza, que subiu uma montanha em um dia qualquer, reconstruiu a vida depois dos 63, que não se resumiu em si, mas desdobrou-se em outro como uma rua que encontra outra em Azinhaga, cidade natal do escritor. O olhar do filme revela que a literatura saramaguiana, tão rica e fascinante, apesar de principal, não foi a única arma do escritor, mas reflexo de toda capacidade de conseguir fazer da vida fruição para além morte, estendendo-se em palavras, imagens, afeição.
Se dificilmente passamos ilesos por um livro de José Saramago, sairemos de "José e Pilar" com uma dificuldade ainda maior em aceitar como a maioria dos atos se perdem em ganância e mediocridade... Combater essa outra tragédia nos carrega da terna responsabilidade de converter todo encontro num modo de inventar mais tempo, rejuvenescendo até o fim.