quarta-feira, 28 de outubro de 2009

pedaço de solidão

Café. Foi o maldito café que me levou ao BomPreço naquela noite... Aliás, pior, açúcar. Precisava de açúcar (assassino!) no meu café com leite em pó. Já passava das uma da madrugada quando adentrei naqueles corredores cheirando a detergente, ecoando a FMica voz de Paula Toller. Um supermercado 24hrs nesse horário é quase um universo paralelo, super iluminado e suspenso no vazio medonho das ruas de cachorros e mendigos perdidos. Salvador fede mais nesse horário, quando todos os corpos deixam de se envolver, colidir... Mas eu não quero falar das esquinas fétidas da cidade. Quero falar de solidão, e um pedaço dela me esperava atrás do caixa. O nome dela era Márcia (assim quis batizá-la )... Lixava suas unhas quando encostei com minha singela cesta vermelha, Boa Noite. Sem resposta Márcia arrastou aqueles pacotes automaticamente, com olhos petrificados de um zumbi inofensivo. Ela não respondeu, apenas perguntou sobre o meu inexistente bomclube. Brinquei sobre isso, sobre eu nunca ter tido esse tal bomclube. Ela sorriu brevemente percebendo como subverti o diálogo que normalmente se instaura entre os zumbis (consumidor/caixa). Levemente levantou a sobrancelha esquerda e puxou assunto. Logo falou sobre como não gostava daquele tempo chuvoso, do número de baratas que circulava por ali, do medo de esquecer certas coisas, da saudade dos pais no interior, sobre morar sozinha... Sobre como preferia ficar no trabalho a estar em casa. Como assim?, pensei. Olhei ao redor, no fundo só estava Ruan (assim quis batizá-lo) limpando o chão e cantarolando as canções da rádio. Márcia se sentia mais acolhida ali, no mundo das embalagens coloridas, números, trocos e bips, da limpeza de Ruan... Sua casa era mais vazia que aquilo.
Pontuava a conversa com algumas piadas banais, mantendo a gentileza de deixar ela falar, achando nobre aquele ato... Ouvir alguém que não conheço no fundo carrega uma certa estranheza. Captei mais melancolia, necessidade de se fazer existir em meio ao nada, enquanto que o que as palavras contavam ficava em segundo plano. Uns vinte minutos depois deixei Márcia atendendo uma galera que comprava às gargalhadas vinhos e latinhas de cerveja. Ouvi um Boa Noite de Márcia pra essa galera.
Sorri. Enquanto olhava minha sacola amarelada na escada percebi que havia esquecido o bendito açúcar (assassino). Lamentei, deixei pra lá. Atravessei a rua, lamentei o cheiro. Abri a porta e ninguém em casa tornou o texto de Márcia ainda mais latente. As palavras passaram prum primeiro plano, e o café amargo me deixou ainda mais existencialista. Sentei no sofá pensando em todas as possibilidades de solidão mais distantes - Tragadas de cigarro na janela por uma mulher recém separada/ O olhar congelado do garçom num espelho de um bar/ O latido pro nada de um cachorro num quintal/ Uma xícara de café amarga e fria em minha mão. - Parece que as pessoas temem o ''Só'' por essa condição lembrar das dívidas próprias mais urgentes, do que deixou de ser feito, resolvido realmente.
A gente passa vida conhecendo gente, conversando, tentando dar sentido a tudo, mas são poucos os que realmente ouvem. É difícil calar. Poucos os que reconhecem uma cor, um cheiro, um silêncio e que ainda tem a sorte de experimentar na própria solidão algum sabor... Existindo insistentemente, pleno em meio ao nada.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

lugares-de-coisas-fartas

O Limite me arrastou pela rua, amarrou minhas mãos em um poste... abri lentamente os olhos e enxerguei luzes piscantes de um velho prostíbulo... de repetente me vi cercado por putas suadas que me mostravam a língua, os seios, e perfumadas cantavam alto meu nome... sorri... O Limite voltou dançante de palitó azul, se aproximou e mostrou sua camisa com uma frase... O HUMOR ODEIA VOCÊ... gritei de raiva, cuspi, xinguei... névoas me levaram pra uma sala cheia de EU's, todos concentrados no EU professor... explicava, desenhava gráficos, esquematizando no quadro todos os elementos sombrios da minha personalidade... traumas, defeitos, enfermidades... levantei, todos me miraram, enquanto desesperado buscava uma saída que não havia... aliás, num canto uma janela... corri, mas nunca alcançava, puxei as cadeiras, agora vazias, mas a janela continuava distante... me agachei, me abracei entre suspiros... entrei num denso escuro... abri lentamente os olhos e enxerguei o modo como o vidro temperado da janela refletia o sol dentro do meu quarto... fui a cozinha com a sensação de que alguma merda me esperava... tudo no lugar... voltei pro quarto, tentei rastrear restos daquele sonho absurdo... lembrei das putas e me masturbei até o sol iluminar de outra maneira o quarto... o ato besta me unia novamente a barbárie comum da realidade dos homens que acordam todos os dias sem sonhar com nada, nada...

lugares-de-coisas-fartas - Pág. 02

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Lucrécia B. Karamazov

II Concurso Estadual de Crítica Cinematográfica Walter da Silveira
http://www.dimas.ba.gov.br/critica2009/lista_de_premiados.htm

E num é que as vezes esse negócio de cinema da mesmo certo?! Que bom... (Click e leia as críticas completas!)

Sobre imobilidade e movimento em Linha de passe

"A catarse do filme cresce e suavemente explode em um final aberto e altamente lírico... A probabilidade do gol é a própria probabilidade da vida que de tão estanque e injusta faz Dinho repetir 'Anda, anda', como se fosse ordem, vontade maior pelo movimento a todos os outros personagens: a mulher da cadeira de rodas, a mãe ofegante sobre a cama... E por que não do nosso cinema. Cada irmão, anulados nas multidões vomitadas pela cidade, descobre seu meio de impor a visibilidade que tanto precisam. “Você tá me vendo?!”, grita Denis com o motorista ao tirar capacete, enquanto Reginaldo passeia calmo com o ônibus entre os viadutos, rindo de sua proeza."

A desconstrução final de Memórias do Subdesenvolvimento

"A complexidade da personalidade de Sergio segue o caminho inevitável da desconstrução, como Nietzsche, ao propor uma filosofia feita à marteladas. Em meio a essa demolição, Alea acaba por expor a maior contradição do personagem: a chave da sua incompatibilidade está justamente em seu nível de lucidez e consciência. Nem revolucionário, nem burguês, ele é um quase intelectual que não consegue definir seu papel e atuação."


quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Um cinema mais que cinema - O ANTICRISTO

"O artista existe porque o mundo não é perfeito" - Tarkovsky

Num determinado momento de O ANTICRISTO os pensamentos se perdem, as idéias e interpretações viram alpiste, a capacidade de definição não faz sentido… Somos tomados de forma tão pungente pelas imagens que a poltrona parece se contorcer junto com o corpo. Lars Von Trier parece ter tanto a mostrar que não deixa muito espaço durante o filme pra nossas próprias reflexões, ou pelo menos pra sua organização. As imagens por si só parecem silenciar o texto. A plasticidade suavizante das primeiras cenas já nos apresenta um universo regido pela crença absoluta na imagem. A ópera de Händel, o preto e o branco, a hiper-lentidão da penetração, da colisão entre os corpos, da queda da criança, guardam uma beleza trágica e perversa que não nos poupará do choque... E não há outro meio pra chegar ao que o diretor /autor quer nos dizer, pra tentar entendê-lo há de se ter muita responsabilidade e espírito livre.
A impressa cinematográfica gasta centenas linhas pra falar da polêmica estréia do filme no Festival de Cannes, sobre a depressão do diretor, das chocantes cenas, etc. Na análise de qualquer filme de Lars Von Trier todas essas reverberações devem ser levadas em conta, o problema é quando essas acabam sendo mais discutidas que o próprio filme. Claro, a polêmica toda sempre vende mais, e ele próprio tem parte de culpa nisso. Acho que é dessa superficialidade, e da impressionante necessidade de discutir e mastigar cada cena, que meus dedos coçaram compulsivamente pra escrever. Saí da sessão embasbacado, desnorteado, torcendo e esperando os pensamentos educadamente se recomporem.
O Anticristo é o mais pretensioso de seus filmes. O diretor parece querer fazer do seu cinema mais que cinema, mas também cura de suas próprias dores e questionamentos. Será que o artísta precisa experimentar de uma dor incalculável pra depois expulsá-la com Arte?! Muitos exemplos provam que sim, e Lars nos mostra seus próprios pesadelos na tentativa de descortinar as dores e culpa de toda humanidade. Esquizofrênica tentativa! (O que seria de nós sem elas?!)
Sua tese aqui é sobre a existência, sobre a representação que fizemos do Bem e do Mal pra julgar e edificar nosso mundo. Ondas do destino, Dançando no escuro, Dogville já contemplavam com a mesma visceralidade esses aspectos, mas o exorcismo do diretor aqui parece ainda mais desesperado e urgente. Pra isso ele se apropria e subverte o próprio emperrado gênero de Terror (o título já é uma clássica referência do estilo, que claro guarda significados muito maiores).
A densidade sufocante do filme potencializa o maior dos enfrentamentos: Ela e Ele no Éden pra um histórico e doloroso acerto de contas! Se a Bíblia nos conta a historinha da criação do mundo, Von Trier irá desconstruí-la pra provar o quanto somos contra a idéia de perfeição... O Homem é incompatível com a Natureza justamente por não aceitar seu grandioso poder. Tudo diferente do Cristo foi demonizado e subjugado: o corpo, a mulher, a natureza, os índios... E por aí vai, uma longa lista de cristianizados na base do fogo. O Cristo que é homem que é a civilização contra a Natureza que é Mulher, e por isso Igreja do Demônio. O "caos'' dessa Natureza é tudo de que o homem sempre buscou fugir, desorganizando o orgânico pra estruturar a ilusão de um mundo superior, ''limpo''... Mas a raposa avisa que "o caos reina'', porque a Natureza é maior, e é aí que está todo nosso desespero. Sufocar, queimar, estuprar, escravizar não poderá conter sua impiedosa resposta final.
Se o sexo é o único elo entre esses mundos, e da procriação trágica da humanidade, ELA abortará tais possibilidades ejaculando sangue, cortando o clitóris, permitindo a queda do filho. Ela é a catalisação de Grace, Bess, Selma dos outros filmes de Von Trier, o que faz da melhor parte da sua filmografia um só grito. E desse agudo som todas essas Evas lentamente virão morro acima nos colocar junto da mesma absurda e desordenada fogueira, que de tão alta pode atingir a essência daquilo que misteriosamente somos feitos, mas que nunca realmente queremos enxergar.

Em O Anticristo Nietzsche diz: "É um doloroso, um arrepiante espetáculo que despontou para mim: abri a cortina da corrupção do homem." E ainda... "É necessário ter o caos cá dentro para gerar uma estrela". Interessante coincidência? Nada parece gratuito nesse filme. Assim como a justíssima dedicatória final ao mestre Tarkovsky. Através dessas referências podemos imaginar a abrangência simbólica e física dessa obra, que continuará maldita, Antiparalisia, Antidepressiva, amaldiçoada pela capacidade de perturbar nosso letárgico sono, elevando nossa natureza para muito além dessa covardia que nos ensinaram por tanto tempo.


ps: todas as divagações e delírios desse humilde texto são de inteira responsabilidade da chuva torrencial que cai aqui fora, mas que invadiu também minhas reflexões... A natureza é mesmo demoníaca!

por: ramon m. coutinho