quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

a brecha antes do verde

Cinco da tarde, trinta e sete carros, quatro ônibus e sete motos param no sinal vermelho que só voltará a ser verde depois de cinquenta e cinco segundos. São seis os veículos menores que tem mais de uma pessoa em seu interior. Cada uma dessas enquadradas em suas posses diante das poses em pequenos espelhos, reflexos turvos, sombras quadradas. São rostos sós em meio a multidão de metal em volta? Os carros populares no Brasil tem aproximadamente 4 metros de comprimento e um e setenta de largura, cabendo em média cinco pessoas em seus bancos de espuma. As pessoas sentem, mas os números que importam. Números, não pessoas. A cidade não acredita em gente, mas nas numéricas forças mecânicas/elétricas encobertas de metal com design moderno do último ano.

O vento é leve e se desloca sob as mangas rosas vendidas no sinal por pais de família que pegam ônibus pra chegar até aquele sinal de cinquenta e cinco segundos. Pedro tem carro e se sente mais feliz com isso. Recusou as mangas. Tento atravessar a rua, mas minha posição parece alvo e apenas observo a distância que tenho que percorrer até a faixa própria para transeuntes. Me aproximo dela, mas o outro lado ainda se mostra longe mesmo pra passos apressados. Sigo dentro dessa brecha, período de tempo misericordiamente concedido aos desmotorizados quase inválidos por sua condição de impotência e espera. Avelino passa uma pequena toalha rosada em sua testa suada antes de voltar a acelerar o ônibus enquanto Joyce se arrasta entre as pessoas pra descer no próximo ponto. Um pouco a baixo carros parados, travas elétricas, alarme, vidros fumê cobrindo esses pequenos mundos de falsa segurança, que logo voltarão a acelerar lentos entre si.

Quatro, três, dois...

A cena deveria cortar aí pra aquele dia em que o vento se deslocava sob meu rosto enquanto pedalava leve pela avenida próxima de casa. Resolvi seguir, mesmo depois do destino, como se a bicicleta tivesse personalidade maior que qualquer preguiça ou preocupações de fim de tarde, paralisando também qualquer coisa acima de vinte quilômetros por hora. Haveria essa cena, de tão incomum, que ser registrada e do alto, na memória da moça num oitavo andar que acha válido aquilo ficar em si, antes de voltar a limpar móveis que não são seus. Passando uma flanela úmida de álcool sobre a mesa ela quis repetir aquele movimento distante de uma bicicleta descendo uma rua parada, simplesmente sem pressa pra nada. Lembrou de um dia da sua infância, quando num parque próximo de casa também se deixou levar assim por sua bicicleta em oito longas voltas, contadas disciplinadamente a partir do poste de luz quebrada. Lenta arrasta agora o pano até o fim da mesa de um modo estranho, pelo menos pra quem não sabe daquelas memórias unidas, das suas vontades, daquela angústia calada de perceber o número que é. Tomou pra si aquele brecha pra sentir de novo a escolha do movimento, mesmo quase inútil, ilusório, mínimo que seja.

Um.

Verde.


segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Duas vezes Tropa de Elite 2

Eu não queria escrever sobre Tropa de Elite 2 pelo simples fato de que muito já foi dito e se dirá sobre Tropa de Elite 2. Atraído pela lei da desobediência própria me apeguei a incomum idéia do enfrentamento das filas, multidões e sacos de pipocas disputando com o som do filme, pra ver se haveria algo a ser dito sobre esse peculiar produto do cinema contemporâneo nacional.
Peculiar primeiro porque é uma sequência de sucesso comercial, mas que não é uma comediazinha barata dirigida por um Daniel Filho, e que ainda consegue a façanha de ser debatida pela crítica, botecos, puteiros e universidades. A saga Tropaelitiana parece cercada de vários encontros incomuns dentro da nossa cinematografia recente. Sem querer causou toda uma discussão sobre pirataria, direitos autorais e nos modos como as pessoas acabam se apropriando dos produtos culturais através de um mercado paralelo as leis de distribuição habitual. Se tornou um ícone pop, mesmo fazendo uso de um tema tão complexo como a violência e o tráfico de drogas. De alguma maneira o filme também abriu portas para demonstrar que o cinema nacional pode dialogar e ser visto pelo grande público e ainda assim tratar de questões sobre nossa realidade, mesmo tendo em sua narrativa facanacaveira diversos elementos duvidosos que comprometem o poder do seu discurso.
É, normal que o olhar naturalmente se entorte pra tudo isso que vende e desperta muita atenção... Capitão Nascimento, queiram ou não, é um herói, e como todos, débil em sua missão, vítima do seu tempo, submerso em convicções impostas pelas circunstâncias que nesse segundo filme José Padilha quis complicar ainda mais. Se no primeiro filme a linha dramática do personagem estava em se livrar de suas tarefas trágicas em nome de uma vida mais pacífica com sua família, esse segundo se ocupa em revelar sua tomada de consciência frente aos equívocos do passado e do presente, e como pra isso alguns, que não são meros bandidos ou mocinhos, precisam derramar sangue. O filme é uma sequência de desenvolvimento (claramente exposta no sub-título - o inimigo agora é outro) que não se apega a certas repetições dos elementos e jargões que agradaram tanto sua audiência. Mesmo assim, como no primeiro filme, sua estrutura ainda se desenrola sobre a mescla de conflitos éticos/profissionais em pleno choque com questões pessoais/familiares... Daí talvez a comparação com O Poderoso Chefão junto com mais uma centena de filmes que se influenciaram com esse esquema. Todos os personagens - O filho, Matias, o defensor dos direitos humanos, a política, a mídia - estão amarrados num rigor dramático que por vezes nos faz querer reagir para além da poltrona confortável em que estamos encostados, afinal todos que assistem de um modo ou de outro se sentem parte dessa enorme cadeia de injustiça que nos rodeia, mas que aprendemos a conviver e esquecer.
Diante dos últimos acontecimentos no Rio e o modo como Tropa de Elite 2 tenta afundar ainda mais os dedos na ferida, fica claro o quanto esse cinema novo de agora se faz tão urgente numa função que muitas vezes lhe adianta sobre a própria realidade que tenta retratar. A primeira cena do filme carrega a mesma lógica trágica que norteia as estratégias de combate da violência no Brasil, onde o Estado se ausenta por décadas dos guetos e favelas e num belo dia de sol resolve voltar executando, prendendo e recebendo aplausos. Todas essas situações de tensão falsamente resolvidas apenas com mais enfrentamento direto (usando outras palavras menos doces: guerra civil), onde a grande mídia faz seu banquete, como num comercial da Sadia, com tantas imagens fantásticas se repetindo no Fantástico, seduzindo nossos olhares distantes pra um maniqueísmo aparentemente vazio, mas que está carregado de intenções. A varredura da "tropa do bem" no Rio tem interesses óbvios e objetivos diante de grandes investimentos em torno dos eventos esportivos futuros no Brasil, principalmente nessa cidade que chamam maravilhosa, enquanto o povo ali continuará organizado e cercado por outras patrulhas bem armadas, agora mais oficiais.
Como é que as pessoas acreditam que os problemas da segurança pública serão resolvidos com mais fuzis e presos em penitenciárias de segurança máxima?! A resposta não será dada, mas enquanto isso o tráfico se espalhará, se reorganizando em outros quintais, e nos esqueceremos que tal processo de pura desigualdade (palavra que nunca parece perder seu frescor) se arquitetou por décadas e séculos e que não irá se resolver com alguns meses de ação dos super-Bopes junto com o exército, seus tanques e uniformes imponentes. Logo o tempo cáustico e verdadeiro nos dirá na prática que diante dessa visão outros capitães nascimentos surgirão na tela do jornal dando entrevistas enquanto jantamos com nosso mal estar, crendo em uma guerra absurda que conferje homens em escudos de um sistema que sabe bem o que tirar de suas ignorâncias.
Ao final a câmera sobrevoa Brasília como se quisesse passear por toda nossa história dominada e contada por alguns poucos, enquanto esse herói, ingenuamente porta voz de tantas outras, discursa em voz off, nos emprestando um pouco sua revolta personificada e assumida. Com alguns sacos de pipocas silenciosos e vazios acabaremos o filme experimentando esse gosto de que como ele nós só podemos deixar esse irrealizável papel de inocentes e ilesos quando reagirmos diante daquilo que justamente não queríamos ver e enfrentar.