domingo, 27 de julho de 2008

rETALHOS

"...Ah, eu quero te dizer
Que o instante de te ver
Custou tanto penar
Não vou me arrepender
Só vim te convencer
Que eu vim pra não morrer
De tanto te esperar
Eu quero te contar
Das chuvas que apanhei
Das noites que varei
No escuro a te buscar
Eu quero te mostrar
As marcas que ganhei
Nas lutas contra o rei
Nas discussões com Deus
E agora que cheguei
Eu quero a recompensa
Eu quero a prenda imensa
Dos carinhos teus."

Antes do início da próxima música ela desligou o mp3, queria continuar com aquela, mas em silêncio. Pensou nos versos, desvirou os olhos e pela janela do ônibus viu um dia azul de sol e falou, para si mesma: "o mundo não parece assim tão triste". Pensou em todas as cores que se confundiam, em todo o brilho que quase agrediam seus olhos e naquele sol que insistia em iluminá-la.

Desceu no ponto seguinte quase relutante, a viagem estava boa. Percorrer os olhos pela cidade parecia deixá-la renovada, como se a velocidade pudesse subverter toda aquela insensatez atroz e corrosiva. Observava, agora devagar, a multidão que lhe envolvia, e que em outros momentos certamente lhe deixaria irritada. Seu olhar cuidadoso se perdia nos rostos, lojas, conversas, até paralisar num velho que parecia, assim como a árvore que repousava suas costas, emergir do concreto do passeio público. Com as pernas cruzadas de maneira engraçada e com um minúsculo resto de cigarro entre os dedos, o moribundo mendigo estava à deriva. Seu olhar envolto de vazio só encontrou maior justificativa ao seguir o cachorro que vinha em sua direção. Sua mão pousou na cabeça do animal e por um segundo o velho sorriu... Ao organizar aquele testemunho, ela lembrou do seu escritor preferido: "um leve momento de beleza invisível me tocou os olhos, e eu vivo, respondi, e respondo...”.

Nos segundos seguintes ela se deu conta que estava ali fazendo parte de toda a cena, sendo também o cachorro, o velho, o olhar...

por: Nina/ Ramon
e música "Sem Fantasia" - Chico Buarque


sexta-feira, 25 de julho de 2008

Cafe De Los Maestros

A sensibilidade de unir a força e a beleza do tango com a abrangência de sensações que uma tela de cinema pode provocar coloca o documentário “Café dos Maestros” no patamar dos grandes documentários contemporâneos. A paixão pela arte desses mestres nos arrepia a cada música, a cada história... Seguindo a trilha do também excelente "Buena Vista Social Club", o filme resgata e prova a força de um estilo musical aparentemente ultrapassado, dando-lhe vida através das pessoas e do espaço no qual foi produzido.

Cinema e música pra nos fazer chorar, rir e viver mais!

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Saramago

...pois desde a aurora do mundo sempre os incêndios atraíram os homens, há mesmo quem diga que se trata de uma espécie de chamamento interior, inconsciente, uma reminiscência do fogo original, como se as cinzas pudessem ter memória do que queimaram, assim se justificando, segundo a tese, a expressão fascinada com que contemplamos até a simples fogueira a que nos aquecemos ou a luz duma vela na escuridão do quarto. Fôssemos nós tão imprudentes, ou tão ousados, como as borboletas, falenas e outras mariposas, e ao fogo nos lançaríamos, nós todos, a espécie humana em peso, talvez uma combustão assim imensa, um tal clarão, atravessando as pálpebras cerradas de Deus, o despertasse do seu letárgico sono, demasiado tarde pra nos conhecer-nos, é certo, porém a tempo de ver o princípio do nada, agora que tínhamos desaparecido. ...

O Evangelho Segundo Jesus Cristo, José Saramago - Pág. 168/169