quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

a brecha antes do verde

Cinco da tarde, trinta e sete carros, quatro ônibus e sete motos param no sinal vermelho que só voltará a ser verde depois de cinquenta e cinco segundos. São seis os veículos menores que tem mais de uma pessoa em seu interior. Cada uma dessas enquadradas em suas posses diante das poses em pequenos espelhos, reflexos turvos, sombras quadradas. São rostos sós em meio a multidão de metal em volta? Os carros populares no Brasil tem aproximadamente 4 metros de comprimento e um e setenta de largura, cabendo em média cinco pessoas em seus bancos de espuma. As pessoas sentem, mas os números que importam. Números, não pessoas. A cidade não acredita em gente, mas nas numéricas forças mecânicas/elétricas encobertas de metal com design moderno do último ano.

O vento é leve e se desloca sob as mangas rosas vendidas no sinal por pais de família que pegam ônibus pra chegar até aquele sinal de cinquenta e cinco segundos. Pedro tem carro e se sente mais feliz com isso. Recusou as mangas. Tento atravessar a rua, mas minha posição parece alvo e apenas observo a distância que tenho que percorrer até a faixa própria para transeuntes. Me aproximo dela, mas o outro lado ainda se mostra longe mesmo pra passos apressados. Sigo dentro dessa brecha, período de tempo misericordiamente concedido aos desmotorizados quase inválidos por sua condição de impotência e espera. Avelino passa uma pequena toalha rosada em sua testa suada antes de voltar a acelerar o ônibus enquanto Joyce se arrasta entre as pessoas pra descer no próximo ponto. Um pouco a baixo carros parados, travas elétricas, alarme, vidros fumê cobrindo esses pequenos mundos de falsa segurança, que logo voltarão a acelerar lentos entre si.

Quatro, três, dois...

A cena deveria cortar aí pra aquele dia em que o vento se deslocava sob meu rosto enquanto pedalava leve pela avenida próxima de casa. Resolvi seguir, mesmo depois do destino, como se a bicicleta tivesse personalidade maior que qualquer preguiça ou preocupações de fim de tarde, paralisando também qualquer coisa acima de vinte quilômetros por hora. Haveria essa cena, de tão incomum, que ser registrada e do alto, na memória da moça num oitavo andar que acha válido aquilo ficar em si, antes de voltar a limpar móveis que não são seus. Passando uma flanela úmida de álcool sobre a mesa ela quis repetir aquele movimento distante de uma bicicleta descendo uma rua parada, simplesmente sem pressa pra nada. Lembrou de um dia da sua infância, quando num parque próximo de casa também se deixou levar assim por sua bicicleta em oito longas voltas, contadas disciplinadamente a partir do poste de luz quebrada. Lenta arrasta agora o pano até o fim da mesa de um modo estranho, pelo menos pra quem não sabe daquelas memórias unidas, das suas vontades, daquela angústia calada de perceber o número que é. Tomou pra si aquele brecha pra sentir de novo a escolha do movimento, mesmo quase inútil, ilusório, mínimo que seja.

Um.

Verde.


segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Duas vezes Tropa de Elite 2

Eu não queria escrever sobre Tropa de Elite 2 pelo simples fato de que muito já foi dito e se dirá sobre Tropa de Elite 2. Atraído pela lei da desobediência própria me apeguei a incomum idéia do enfrentamento das filas, multidões e sacos de pipocas disputando com o som do filme, pra ver se haveria algo a ser dito sobre esse peculiar produto do cinema contemporâneo nacional.
Peculiar primeiro porque é uma sequência de sucesso comercial, mas que não é uma comediazinha barata dirigida por um Daniel Filho, e que ainda consegue a façanha de ser debatida pela crítica, botecos, puteiros e universidades. A saga Tropaelitiana parece cercada de vários encontros incomuns dentro da nossa cinematografia recente. Sem querer causou toda uma discussão sobre pirataria, direitos autorais e nos modos como as pessoas acabam se apropriando dos produtos culturais através de um mercado paralelo as leis de distribuição habitual. Se tornou um ícone pop, mesmo fazendo uso de um tema tão complexo como a violência e o tráfico de drogas. De alguma maneira o filme também abriu portas para demonstrar que o cinema nacional pode dialogar e ser visto pelo grande público e ainda assim tratar de questões sobre nossa realidade, mesmo tendo em sua narrativa facanacaveira diversos elementos duvidosos que comprometem o poder do seu discurso.
É, normal que o olhar naturalmente se entorte pra tudo isso que vende e desperta muita atenção... Capitão Nascimento, queiram ou não, é um herói, e como todos, débil em sua missão, vítima do seu tempo, submerso em convicções impostas pelas circunstâncias que nesse segundo filme José Padilha quis complicar ainda mais. Se no primeiro filme a linha dramática do personagem estava em se livrar de suas tarefas trágicas em nome de uma vida mais pacífica com sua família, esse segundo se ocupa em revelar sua tomada de consciência frente aos equívocos do passado e do presente, e como pra isso alguns, que não são meros bandidos ou mocinhos, precisam derramar sangue. O filme é uma sequência de desenvolvimento (claramente exposta no sub-título - o inimigo agora é outro) que não se apega a certas repetições dos elementos e jargões que agradaram tanto sua audiência. Mesmo assim, como no primeiro filme, sua estrutura ainda se desenrola sobre a mescla de conflitos éticos/profissionais em pleno choque com questões pessoais/familiares... Daí talvez a comparação com O Poderoso Chefão junto com mais uma centena de filmes que se influenciaram com esse esquema. Todos os personagens - O filho, Matias, o defensor dos direitos humanos, a política, a mídia - estão amarrados num rigor dramático que por vezes nos faz querer reagir para além da poltrona confortável em que estamos encostados, afinal todos que assistem de um modo ou de outro se sentem parte dessa enorme cadeia de injustiça que nos rodeia, mas que aprendemos a conviver e esquecer.
Diante dos últimos acontecimentos no Rio e o modo como Tropa de Elite 2 tenta afundar ainda mais os dedos na ferida, fica claro o quanto esse cinema novo de agora se faz tão urgente numa função que muitas vezes lhe adianta sobre a própria realidade que tenta retratar. A primeira cena do filme carrega a mesma lógica trágica que norteia as estratégias de combate da violência no Brasil, onde o Estado se ausenta por décadas dos guetos e favelas e num belo dia de sol resolve voltar executando, prendendo e recebendo aplausos. Todas essas situações de tensão falsamente resolvidas apenas com mais enfrentamento direto (usando outras palavras menos doces: guerra civil), onde a grande mídia faz seu banquete, como num comercial da Sadia, com tantas imagens fantásticas se repetindo no Fantástico, seduzindo nossos olhares distantes pra um maniqueísmo aparentemente vazio, mas que está carregado de intenções. A varredura da "tropa do bem" no Rio tem interesses óbvios e objetivos diante de grandes investimentos em torno dos eventos esportivos futuros no Brasil, principalmente nessa cidade que chamam maravilhosa, enquanto o povo ali continuará organizado e cercado por outras patrulhas bem armadas, agora mais oficiais.
Como é que as pessoas acreditam que os problemas da segurança pública serão resolvidos com mais fuzis e presos em penitenciárias de segurança máxima?! A resposta não será dada, mas enquanto isso o tráfico se espalhará, se reorganizando em outros quintais, e nos esqueceremos que tal processo de pura desigualdade (palavra que nunca parece perder seu frescor) se arquitetou por décadas e séculos e que não irá se resolver com alguns meses de ação dos super-Bopes junto com o exército, seus tanques e uniformes imponentes. Logo o tempo cáustico e verdadeiro nos dirá na prática que diante dessa visão outros capitães nascimentos surgirão na tela do jornal dando entrevistas enquanto jantamos com nosso mal estar, crendo em uma guerra absurda que conferje homens em escudos de um sistema que sabe bem o que tirar de suas ignorâncias.
Ao final a câmera sobrevoa Brasília como se quisesse passear por toda nossa história dominada e contada por alguns poucos, enquanto esse herói, ingenuamente porta voz de tantas outras, discursa em voz off, nos emprestando um pouco sua revolta personificada e assumida. Com alguns sacos de pipocas silenciosos e vazios acabaremos o filme experimentando esse gosto de que como ele nós só podemos deixar esse irrealizável papel de inocentes e ilesos quando reagirmos diante daquilo que justamente não queríamos ver e enfrentar.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Cala boca Salvador!

Em um dia qualquer um compositor se vê invadido pelos sons da casa, da rua, da cidade... Apenas um clamor parece poder lhe salvar!

Cala boca Salvador!

Um filme de:
Ramon Coutinho
Joelma Gonzaga
Francisco Gabriel

Atores:
Paulo Rios Filho
Vitor Rios
Artur Rios
Ramon Coutinho

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Sem se distanciar tanto da outra extremidade II



Bau* foi pra África do Sul, e pra aliviar a inveja matadora lhe pedi uma foto. "Velho, não me traga rinocerontes de plástico ou qualquer um desses souvenirs... Faça uma foto lá porra". Mesmo ciente da sua larga experiência fotográfica com pia de banheiro de hotel (entre outros
objetos privados) lhe exigi esse favor com o intuito de exercitar possibilidades: uma imagem com um olhar de um compositor de sons em um lugar que eu gostaria muito de sentar embaixo de uma árvore e achar que tudo ali é especial. Não é todo dia que essa oportunidade nos surge assim como se fosse o busú Marechal Rondon via Campo Grande. Queria ver, mesmo de longe, uma pequena parte da África que não fosse Rei Leão, imagens estilos discovery ou filmes americanos sobre guerras civis no continente... Pretensão demais pra uma única imagem? É por isso meu amigo Bau tratou de arranjar mais de uma, proporcionando só o aumento da vontade de pisar lá e achar logo essa árvore que deixa tudo especial.
Vieram as fotos, algumas histórias e ainda um pedaço do cinema africano: "Nothing but the truth", filme de John Kani.

Nunca estive, mas como sinto falta da Africa em mim...


*Para os menos íntimos - Paulo Rios Filho é compositor e não fotógrafo.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

"José e Pilar" - Encontro pra inventar mais tempo

Em junho estava em uma ilha que não era minha quando soube que Saramago havia morrido em sua ilha... depois de um primeiro momento lamentando recordei repentinamente de uma frase sua que possibilitou ressignificar minha reação com aquele fato: "Nossa maior tragédia é não saber o que fazer com a vida". Assim simples, ergui meus pensamentos sobre a morte de Saramago através da celebração de suas palavras e inquietações, pelo modo como fez sua existência tão plena de valores. Tal perspectiva fez ainda mais sentido quando me deparei com"José e Pilar", documentário com pouco mais de duas horas que segue o íntimo universo do autor nos seus últimos anos de vida. O título não poderia revelar melhor a intenção do cineasta Miguel Gonçalves Mendes. São os primeiros nomes que lhe importam, ou seja, se aproximar dessas duas pessoas e sua intensa relação, acima de qualquer mito. Pilar del Río, até então discreta nas dedicatórias dos livros do escritor, nos surge como personagem indispensável nessa história entrelaçada em tantas outras. José com idéias para os livros, Pilar com as idéias pra vida, se comprometendo um para o outro e com tantas árduas tarefas de quem escolhe ver e reparar em um mundo que se cobre de cegueira. Como o elefante do seu penúltimo livro, eles seguem uma longa trajetória, aliás várias, pelos quatro cantos pra também se fazer ouvir, ver e se comunicar para além dos livros. Entendemos aí a capacidade de ambos em interagir com tamanha firmeza e simplicidade com a câmera e com seu espaço cênico. As montanhas, "a casa", a trilha sonora e os ventos vão nos conduzindo suaves para densidade dos depoimentos, das pequenas conversas, críticas e reflexões sobre Deus, democracia, tempo.

A Saramago sempre interessou a prática do pensador ativo e inquieto com o modo que as coisas levianamente se reproduzem. Se ele deixa a ilha de Lanzarote, seu refúgio, é em nome desse caro trovadorismo, que chega a comprometer sua saúde, concedendo ao filme um dos seus elementos narrativos mais ricos: um escritor que escreve pra viver e que vive pra sua companheira. Mais que isso, uma pessoa que perseguiu a beleza, que subiu uma montanha em um dia qualquer, reconstruiu a vida depois dos 63, que não se resumiu em si, mas desdobrou-se em outro como uma rua que encontra outra em Azinhaga, cidade natal do escritor. O olhar do filme revela que a literatura saramaguiana, tão rica e fascinante, apesar de principal, não foi a única arma do escritor, mas reflexo de toda capacidade de conseguir fazer da vida fruição para além morte, estendendo-se em palavras, imagens, afeição.

Se dificilmente passamos ilesos por um livro de José Saramago, sairemos de "José e Pilar" com uma dificuldade ainda maior em aceitar como a maioria dos atos se perdem em ganância e mediocridade... Combater essa outra tragédia nos carrega da terna responsabilidade de converter todo encontro num modo de inventar mais tempo, rejuvenescendo até o fim.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Sem se distanciar tanto da outra extremidade

A verdade é que depois daquela conversa toda eu gostaria de estar em Istambul... Era simples a vontade de caminhar sozinha por um lugar distante, que não sei quase nada, se não pela afinidade estranha com a percussiva e simpática palavra. Is-tam-bul... Depois de tantas frases duras e difíceis aquele era o lugar que eu gostaria de estar, silenciada pela fascinação de mais que ver, ouvir... Eram os sons magnéticos que me interessavam depois de tantos ruídos agressivos. Queria deitar na grama da Turquia e sentir o modo pela qual sua brisa leva meus pensamentos, como aquela vez que atravessei o rio da minha cidade num barco velho com um livro de um escritor desconhecido sobre o rosto. Olhar o estreito de Bósforo e crer que, como em meu peito, aquela rachadura ainda permitia tanto mar fluir, sem se distanciar tanto da outra extremidade. Faria todo tipo de metáfora idiota querendo a cidade, ela em mim, com todo seu caos e banalidade, pulsando em sutilezas, aromas e erros menos meus, mais de todos.

Nunca estive, mas como sinto falta de Istambul.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Nocturno del Parque H

Insana, mi torpe soledad aquí en La Habana
a un ritmo sin mercados (y sin drogas);
solo, en la quietud fosfórica de este domingo
fumo sin tregua en el tabaco negro de los Hnos.
[Invertidos.

No sé de más que del nombre de Mariana:
el recuerdo espejeado de esos senos ingráves,
como un ídolo azteca clavado en el centro del
calendario.
Un vientillo airoso se arremete contra el colmo del tocado,
desata la evangelista pudorosa en el más del turbante
el blanco más turbado.

Pajuso que se mira al saber que está en la mira,
pájaros del Parque a su vuelo fugitivo en espasmo
teológico:
el esputo victoriano de Hugo se estrella láctico en la vía.

Tres billetes macedonios se almizclan en los bolsillos
revolucionados,
La comunión con Martí en Baragua.

way too much mojitos murmuraba en la carpeta
la sueca pectopulenta de carrillos langostinos,
pero su moral de foca ultraeducada ya se ahoga
en la espesura colombiana de mis dichas de cadeca.


El Diablo, (Hernando Castillo)
Año 52 de La Revolución.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

em nome do supremo delírio

"o habitual é o mais difícil de conhecer,
isto é, de ver como problema, isto é,
de ver como estranho, afastado,
fora de nós"
f. nietzsche

Meu personagem encontrou o olhar dela pelo menos sete vezes naquele dia 14, que fiz quente, chuvoso. Eram olhos tremidos pela lentidão da avenida, pelas rodas tropeçantes do ônibus engarrafado, dando um tom incerto naquele outro rosto a sua frente... Foi essa incerteza que chamou a atenção dele, que logo depois de uma vírgula se virou e me disse:
- Eu preciso desse engarrafamento por um pouco mais de tempo!
O medo dele era de que ela se fosse assim, no próximo ponto, e nada de nada ocorresse. Deixei o ponto passar sem que ela saísse do veículo. Ele queria aquele tempo pra observá-la, pra projetar seus anseios num quase-ato, uma anti-ação não angustiante, mas degustativa... Só imaginar do que ela seria feita além daquele rosto distorcido.
Eles de pé, tendo um metro e quinze de consentimento e distância entre os corpos, e nada mais que treze centímetros entre as mãos, apoiadas nas barras de ferro contorcidas do ônibus.
A espera, o devir deveria comandar aquela história... Por um segundo me senti dominado pelo tal personagem, guiava minhas palavras através do seu olhar lento, do suor mínimo na testa que pensei até em acrescentar uma cicatriz. Enfim aquilo não ia funcionar. Todos ali presos, engarrafados em seus distanciamentos, no não chegar no que realmente queriam... Ninguém naquele ônibus era ou fazia o que realmente gostaria... E meu personagem-paciente sabia disso tanto quanto eu. Tive mesmo que reverter tudo repentinamente, usando aqueles dois personagens em nome do delírio, levá-los a um instante supremo de fazer aquilo que se quer, em nome da coisa que esperamos anos pra sentir. Converti seus mundos num realismo fantástico onde as mãos podiam sem tanta demora se tocar com firmeza, sem receio os olhos também fixados se guiando até o lento pouso dos braços sobre os ombros do outro, e sem pensar, permiti as mãos dadas, saindo pela porta, rodopiando na rua, e como uma valsinha inconseqüente fazendo de tudo uma irresponsável música... Não mais palavra, frase ou conjugação, mas apenas melodia de delírio e do encontro.

--pra thaís m. !

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Lapiando o olhar

Uma câmera em várias mãos, fixa, um cenário favorável, um artista em atividade... Tudo isso em pouco mais de cinco minutos sem efeitos nem edição aprimorada. Parece que o maior desafio, antes de tudo, foi mesmo parar de falar de idéias e efetivamente criar imagens e interpretações. Um pequeno exercício do tão sonhado curso de cinema da Ufba, que aos poucos ganha forma, cenas e um pouco menos de enrolação.



A idéia era filmar a fotografia, o processo criativo em um lugar bastante conhecido, extremamente caótico e significativo pra o movimento da cidade. A Lapa logo nos surgiu como cenário possível pra essa recriação do olhar sob um espaço banalizado pelo cotidiano. Rodas, câmeras e pernas em um mesmo pique, com início, meio e fim. No meio de toda essa pretensão teórica e metalinguística parece que conseguimos alguns movimentos, risadas e a prazerosa sensação de fazer o que se quer com a ilusão que a arte pode nos empolgar.

Equipe:
Joelma Gonzaga
Francisco Gabriel
Ramon Coutinho

Personagem, fotógrafo e amigo: Carlos Vin Lopes

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Um só-riso amarelo

Talvez se eu tentasse desenvolver de outra maneira, afinal... Uma menina me entrega um papel enquanto eu chegava no passeio interrompendo meu pensamento, dou uma rápida olhada, volto aos neurônios. É uma outra tentativa... Opa, o que é isso?! Não havia mais como retornar as minhas divagações internas depois daquele pequeno folheto estampando um número e um sorriso agressivo. Baixei o papel até a cintura, olhei de novo, dei uma risada quase tão sem graça quanto a do rapaz que pedia meu voto. Nenhuma novidade: era um homem, um número e um sórdido riso. O problema é que aquele símbolo da felicidade, parecia ali no fundo um escárnio, deboche representando de uma ponta a outra um certo cinismo que a política nos mete na maioria das vezes que nos lembramos dela. Eu não queria (nem quero) cair naquele tipo de análise simplista e rasa sobre a situação política e blablabla, mas realmente em tempos de eleições as agressões morais e visuais parecem se intensificar, e não mais através dos atos ilícitos e as escondidas, agora é hora de mostrar cores, sorrisos, marketing e simpatia. Levei o folheto pra casa afim de fazer uma análise mais apurada de sua iconografia, afinal certamente o barulho e tumulto da rua contribuem no embaralhamento das idéias. Sim, eu estava certo... Não, ele não está sorrindo. Aquele homem estava desesperado e os seus lábios falsos meio abertos só escancaravam tal situação, como aqueles animais de circo que fazem seu "espetáculo" a base de chicotadas. O voto, proclamado como grande arma de mudança democrática, acaba também nos acomodando em uma zona de passividade, e assim iludidos pelo feito nobre, empurramos nos botõezinhos da urna toda a responsabilidade e culpa até a próxima eleição: sorriso forçado, aperto de mão, toneladas de lixo em publicidade. Ainda encontramos por aí boas risadas, como as apresentadas pelo candidato Tiririca que sabe realmente provocar risos naturais e saudáveis, como a vida deve ser. Ironicamente o bobo da corte parece aos poucos chegar ao trono se aproveitando do absurdo e da piada sem graça que sempre recontamos, sempre lembrando de ser brasileiros o suficiente e de nunca deixar a alegria desesperada perder pra consciência e a razão. Seria um retrocesso ou um processo?
O que sei é que aquilo me angustiou, aquele folheto, aquela ode a falsidade, como num carnaval de imagens engolindo atos e reivindicações, fazendo tudo descer suave e lubrificado num engodo propagandístico onde perdem a memória, mas nunca a pose. Talvez uma amiga tivesse certa quando opinou que todo político deveria ganhar o mesmo salário de um professor pra ver se as coisas começavam a engrenar.
Aiai, há quanto eu não escrevo sobre cinema mesmo?!
Se um riso amarelo realmente pode nos salvar de conclusões e respostas mais sérias, então vamos lá:


domingo, 12 de setembro de 2010

Miradas

O velho
O menino
A andante

Mais? Perca seu tempo também aqui: http://www.flickr.com/photos/acelgas

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Uma alergia contra a acomodação

Um, dois, três espirros me fizeram ter certeza que meus pés já se firmavam sobre a crosta soteropolitana... Descobri recentemente que minha rinite alérgica se manifesta não por culpa de cantos empoeirados cheios de ácaros ou de gatos perdendo pêlo, mas sim, quando minhas mucosas nasais captam os ares do cotidiano, do dia-a-dia feijão com arroz. O ponto, o ônibus, a rua frenética, passarela mijada, universidade, pão com queijo e internet. Talvez a respiração ofegante de novos dias em novos lugares e novas pessoas não precisem expulsar nada do corpo, mas, pelo contrário, apenas absorver... É como se ela (a Senhora Rinite) precisasse reconhecer seu espaço e norma para agir.
Chicoteei o ar com a cabeça mais uma vez no décimo terceiro espirro em um plano seqüência de um minuto e meio entre a cozinha e o banheiro. Admito: infelizmente tive que xingar. Cambaleante me debrucei sobre a pia pra espirrar com toda força, como se empurrasse, esmurrasse aquela sensação de voltar ao normal. Seria uma alergia contra a normalidade ou contra a comodidade de certos hábitos antigos? E em pensar que em alguns momentos acreditei estar livre de algum deles, consequentemente livre das visitas da Senhora Rinite.
Voltar e reencontrar é bom, precioso e no fundo reconheço a importância de uma boa rotina, o problema é não fazê-la da maneira que se quer, tropeçando sempre em algumas procrastinações clássicas. Fazer o que se quer e se deve é mesmo uma arte...
Admito: me droguei com o antialérgico vermelho e me entreguei a lerdeza letárgica de acreditar que uma hora tudo acaba bem. Talvez estivesse sendo exigente demais com os poucos dias que precederam o tal retorno... Um retorno que diz, refaz e potencializa tanto aquelas experiências logradas na ilha desconhecida. Desfazer completamente a mala é o verdadeiro sinal que aquela viagem incrível e utópica terminou, por isso que ainda mantenho algumas peças de roupa menos queridas na mochila como se fosse uma instalação natural do meu movimento contínuo, agora ativado através da memória, conversas, fotografias e cicatrizes.
Então que venham todos os (mentira, alguns...) espirros cada vez que esquecer dessa pretensão melhor de manter as coisas para além do mofo acomodado do mais ou menos.

ps: ainda bem que Senhora Rinite não sabe ler.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Esboçando cuba II

Estuve yo alli sentado, con la mano sujetando la maleta, en el tren que me conducía del aeropuerto al sureste de Londres, a casa, observando a mi alrededor los rostros que me parecían muertos por dentro, como zombies sin el maquillaje gris puesto. Apenas había pasado una hora desde que aterricé en Inglaterra. Estuve yo allí sentado, decía, cuando empecé a echar La Habana de menos.

Las dos semanas que transcurrieron en la EICTV me traen buenos recuerdos, y no hay duda de que el curso de guión me ha dado una nueva perspectiva sobre el cine, pero fue la capital cubana la que me rompió el corazón, de la mejor manera y en el mejor de los sentidos. Utilicé la palabra “cinematográfica” para describir La Habana y no he encontrado mejor término desde aquel entonces.

La estética de la gloria caída, los muros patrióticos que se desintegran, los taxis públicos con asientos-sofá, el aire que te asfixia y el viento que te lleva en volandas... Nada es cómodo o sencillo, en el sentido que se le suele dar a esas palabras en el mundo consumista y, por lo tanto, cada detalle esconde una pequeña aventura.

La Habana es, simplemente, una ciudad imposible de romantizar, porque la realidad está más allá del romanticismo estéril al que la cultura moderna nos tiene acostumbrados. Y eso lo digo sabiendo que yo sólo probé una pizca de su alegría y su amargura y su tristeza y su fiesta.

Como siempre suele ser, los viajes quedan marcados por las amistades momentáneas. Aquí me limitaré a hablar de los chicos de la habitación de Ramón, por perjuicio positivo hacia ellos.

Con Ramón, ese cinéfilo-actor de cuerpo fino y alma alegre, compartí más tiempo que con nadie. Como es natural, hablamos mucho de cine, pero aún más de nuestras filosofías personales. Me gustó su habilidad de entrar en las situaciones con tranquilidad, sin intentar impresionar ni dejarse impresionar demasiado. Aun así, sus imitaciones acabaron impresionando a todos. La de Joäo -- “El mejor día... de mi VIDA!!!” -- se llevo el premio gordo...

El inacabable optimismo de Joäo, su manera de llenar una habitación con su voz, me abrumó a veces. Pero se me quedó marcada una conversación que tuve con él al acabar el dramático partido Ghana-Uruguay. Estaba Asamoah Gyan en el suelo llorando y uno de sus compañeros se puso a levantarlo. “Me gusta que los levanten,” comenté. “Claro,” dijo Joäo, “hay que tener orgullo.” “¿Crees que llorar es no tener orgullo?”, le pregunté. “Se puede llorar,” respondió Joäo, “pero con la nariz en lo alto.” Se puede llorar, pero con la nariz en alto... Ese comentario podría servir como filosofía de vida...

Hernando me cayó, como persona, mejor que nadie desde el principio. Me perdí la mayoría de sus borracheras, cuando decidía soltar la lengua y su donjuanismo, pero su actitud rockera en la última fiesta en la escuela de cine se me quedará como recuerdo de por siempre. También su consejo sobre como conquistar a las mujeres: “Hay que maltratarlas, pues.” Genio...

Mauricio, al que denominé “Mauricio que vive del viento” el último día que pasé en La Habana, sabe lo que hace. Tiene contactos e historias para cien fiestas. Su cita “Para ser más maricón hay que tener dos culos” es más graciosa de lo que parece...

Hablé con muchos cubanos sobre la situación actual del país. Me sentía en una posición privilegiada para hacerlo, siendo yo un ruso hispanopalante que conoció por recuerdo personal y ajeno la antigua Unión Soviética. Un atendiente en el bar de Buena Vista Social Club me comentó que, aun trabajando, él se siente pobre y malnutrido. “¿Donde está la proteína?”, se puso a quejarse. Las señoras trabajando en la tienda del Museo Hemingway hablaron maravillas del Ché, pero confesaron tener “miedo al cambio,” a que les quiten sus ventajas como ciudadanos socialistas.

Todos coinciden en que la URSS era como la mano del padre que guiaba a Cuba como a su pequeño, y que cuando esa mano desapareció, Cuba no estaba preparada, y deambuló... pero sobrevivió sin perder su clase. Y de allí muchas de las maravillas de la gente cubana, que ahora tiene ese don de la sobrevivencia creativa.

Me quedé con la sensación de que la gente en Cuba conserva cierta dignidad de espíritu que el mundo consumista está destruyendo. A lo mejor estoy romantizando las cosas, aunque tengo fama de ser demasiado pesimista. O a lo mejor el viaje me ha cambiado. Quién sabe... Mi plan para Cuba consistía en desprenderme de cierta letargia que se había apoderado de mi vida. Ahora que estoy de vuelta en casa, me siento más letárgico que nunca, porque preferiría estar en La Habana.

Por: Alex Brovtsyn

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Calos, cicatrizes, imagens

Beba as nuvens, que a sêde sede.
Caminhe as ruas, que a cidade arde.
Percorra a idade, que o tempo pede.
Engula os ares, que limpa o céu.

Seus segredos, traga nos bolsos.
Suas vontades, com novos olhares.
Tuas risadas, em novos destinos.
Teus tropeços, deixe nas pedras.

Pés, dedos e olhos,
em sinfônica dissincronia.
Calos, cicatrizes, imagens,
a centímetros da poesia.

Que cicatrizes ganhou a ilha
nessa conversa com uma baía!

Por: Leo Coutinho

domingo, 8 de agosto de 2010

Curtos recortes do cotidiano

Escolha um número e leia: 02 - 17 - 26 - 09



09
Estava assobiando um regaton qualquer quando senti que algo havia acertado minha cabeça. Era relativamente leve, foi o susto que quase me jogou no chão. Paralisado busquei alguém que tivesse testemunhando o ataque. Sorte, ninguém. Perto, no chão, algumas folhas amarradas com barbante denunciavam seu conteúdo. O Granma é o jornal que todo velhinho faz fila pra comprar de manhã cedo. Eu, distante de uma fila, tive a sorte de receber um exemplar na testa enquanto sentia os ares matinais da varanda do apartamento de Margarida. A imensa habilidade do entregador ao arremessar o jornal pra aquele segundo andar, como se fosse uma granada, me fez entender tal sinal, advertência sobre minha desatenção com os meios de comunicação em massa. Dessa maneira, quase imperativa, fui me inteirar da liberdade de expressão socialista. "Gracias caballero!".

26
- E você de onde é? Me questionou a velhinha sentada em uma cadeira um pouco mais distante. Respondi depois de uns segundos tentando reconhecer a localização da voz cansada. Com a mesma capacidade de surpreender exclamou "Roberto Carlos", com um sotaque truncado. E antes que eu desse continuidade ao papo além da risada, me perguntou se ele ainda estava vivo. Ficamos ali conversando até a sessão começar, ela rasgou meu ingresso, me deu a pequena metade e eu entrei pro filme. Me custou um peso cubano, preço simbólico no sentido mais forte de uma coisa barata... Mas tinha um detalhe: "aire condicionado roto". Só em ler o aviso no vidro da bilheteira o calor já se multiplicava. Tinha que chegar calmo, a passos lentos, armado com água gelada e uma folha de papel pra me abanar. A verdade é que depois algumas sessões já estava me acostumando com aquele clima do Cine La Rampa. Na maioria das vezes tal "incômodo burguês" era esquecido com o inicio da projeção, como naquele dia. Mastigando "Underground", de Kusturica, saí caminhando pela rua, agora molhada pela chuva rala. O choque entre ficção e realidade, calor e chuva, personagem e cenário, exalou de novo aquela mesma pergunta de Dona Flora, a velhinha do cinema, se repetindo de uma maneira ainda contestadora... talvez por ter surgido agora em primeira pessoa.

02
Quase três da madrugada e eu estava entre as ruas escuras de Havana em um taxi com dois colombianos. Gritando Andrés não parava de repetir que queria ver umas putas, como se não existissem em Bogotá. Em sua última noite em Havana tentava fazer de tudo pra aproveitar aquelas poucas horas, enquanto Hernando explicava ao taxista como chegar na casa do escritor José Lezama Lima. Nos perdemos umas três vezes até encontrar... não as putas, mas a casa. Paramos, ficamos olhando a enorme porta fechada enquanto Hernando fumava um dos seus cigarros amassados. Abri meu pequeno bloco de anotações e anotei a rua, a hora e um palavrão. Pisei num cocô de cachorro, contamos uns casos engraçados, brincamos com as bengalas de Andrés... Rodamos quase uma hora mais naquele Lada branco ano 86. Encostei o queixo sobre a janela, piscando os olhos e misturando as luzes amareladas com o vento salgado, noturno, carregado de direções.
17
Estava pensando em algumas frases, alguns emails, pessoas, enquanto acompanhava o som das ondas rompendo-se contra o malecon, o barulho dos carros passando ao lado. Tantas são as imagens que essa ilha nos arremata pela simplicidade... Não importa quantas vezes foi fotografada, filmada, descrita, aqui o cotidiano parece carregado de uma sedução mais apurada. Ciente de que tais diferenças e detalhes eram encontrados nesse romântico olhar quase virgem, estrangeiro, questionei também o quanto havia me aprofundado, ido além de certos níveis do "ver". Lembrei da canção de Caetano "O estrangeiro", que faz mais ou menos essas mesmas divagações: "E eu menos a conhecera mas a amara... sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela, o que é uma coisa bela". Nem tudo é belo em Havana, e pra senti-la precisei largar minhas projeções sobre ela, sabendo apreciar seus cantos não por aquilo que eu queria que ela fosse, mas pelo que ela é. As tantas pessoas que conheci, as ruas que ainda cruzo, tudo que estudei, aprendi e questiono me levam pra um sentido que acredito ser mais amplo, carregado de irreparáveis transformações. Outro não sei se sou, mas sei que nunca mais serei o mesmo. Voltando do malecon comprei maní, tirei umas fotos, cheguei no meu quarto, olhei minha mala, lamentei... Epa, mas espera aí, calma, ainda tenho alguns dias pra celebrar.

Comente o número do texto que você leu ou que mais gostou e concorra a um prêmio surpresa.



domingo, 1 de agosto de 2010

Esboçando Cuba

À Havana.
por: joao inada

Cuba parou quando nos viu. Ou talvez já estivesse parada, em meados de 1959 de 2010, ereta e vestida de uniforme militar, fedendo a vulgaridade e a pouca moça virgem, e com bastante musica na esquina. Esquinas com cheiro de cubano, cubano de verdade e olha que cubano mesmo não é lá tão cheiroso. Olha esse cheiro. Cheiro de centro urbano quente e tropical bem sujo-carismático; cheiro de gente na rua, de gente suada, de prédios maravilhosos caindo aos pedaços; de malandragem no ritmo de caminhar, cheiro de Compay Segundo fumando puro; mas junto com cheiro de coisa bruta, concreta, cheiro de medo, aquele cheiro que te lembra a ficar de sentinela pra não pagar de otário, porque depois sai caro — especialmente quando tudo é tão caribe. Não sei, pode ser que cheire até a soteropolitano em dia de iemanjá num vagão de trem lotado rumo ao inferno de uma praia ou de uma procissão, mas que pelo contrário está indo trabalhar, se não vai preso; e ainda dizem que Salvador é mais Santiago. Tenho lá minhas dúvidas.
... pode-se que vagando sempre se ouve o gingado das palavras, e tudo soa tão sonoramente despluralizado — um enfeite do ditorredito popular que muito se ouve mas que pouco se entende, graças a deus.
Querendo tente imitar o incompreensível jogo cubano de falar atirando mastigados melódicos, uma porção deles em pedaços de língua pra tudo quanto é lado(essas são as regras): os resultados surpreendem sempre — especialmente se você for vegetariano. Porém entende-se, entende-se sim, apesar de não ser recíproco. As conversas custam a enveredar mas seguem e vão adiante sempre fugindo da ilha, pra’quele mar lá dos EUA.
Pois então atiram-se os aniversários feito metralhadora. Cuidado, vai a dica: cada velha parada numa esquina de La Havana faz aniversário todos os dias, por isso quer que você pague pelo rum da festa ou pelo porco assado, que alias já está no forno. Obviamente sensibilizado com a decadência destes seres matriarcais, e ainda mais pelo convite irrefutável de um gole de rum claro como o dia, despeje o pouco do dinheiro que lhe resta nas mãos amassadas dessas cubanas e tome no cuc.
Mas vale a pena. Até aqueles charutos nojentos comprados a preço de ouro valem a pena. Podem ser uma merda mais são cubanos. Aquele trago de rum que te faz vomitar também vale a pena; reconhecer Maurinho e o diabo no meio da rua — alunos, coitados; uma Ivett cheia de lindeza e malemolência; uma escola perdida no mundo (“isso sim é golfar com dignidade!”); todo comunismo descaracterizado e persistente que vem no pacote de turismo político — é pra mergulhar e sair bêbado mesmo —, e beber a estátua de Hemingway; se perder no museu fechado do José Lezama Lima todos os dias, quentes e ensolarados com um copo de cana. Passear pelas ruas e por aquele cheiro que marca e que não gasta, nem por nada que não gasta nesse mundo. Cheiro de tudo misturado com verdade bem pouca, com solidez e persistência política unilateral, e aquela pitada de sempre: santeria (com um pouco de Roberto Carlos). Dá saudades só de pensar em ser cubano, de pinga.

domingo, 18 de julho de 2010

Instruções para caminhar por Havana sem se machucar

Esqueça a direção que pretende seguir. O destino sempre chega aos que firmam os pés, os levantando a doze centímetros e meio do chão, evitando assim, pequenos e incómodos acidentes, como os de pedras mais altas do passeio beijando dedos desprotegidos, principalmente nos dias chuvosos de quinta-feira. Levante os pés pausadamente, em ordem, um seguindo o outro como em uma marcha para Plaza de la Revolución no dia 26 de julho. Evite mergulhar no olhar das outras caminhantes, evite pensar que elas também pensam no seu olhar descuidado. Alterne sua mirada entre os paralelepípedos, muros e na direção do sol. Concentrando-se em certos temores distantes como o de um povoado na Escócia que vende livros com uma página em branco perdida em algum lugar do volume. Se o leitor desemboca nesta página às três da tarde, morre.* Evite beber água em garrafas plásticas de 1,5 Litros enquanto caminha, evite ler contra-capas de livros de autores que parecem com os cachorros que esperam algo na escada do seu edifício. Evite discutir alternativas de envelhecimento com um homem de 80 anos que carrega no ombro uma câmara de ar de bicicleta vazia. Não invista olhares prologados sobre as casas de portas abertas que sempre apresentam algo novo. Use sapatos escuros sem rasgos, furos ou infiltrações. E por favor, não imagine devaneios como o de um pescador buscando seu peixe entre as nuvens. Com essas instruções a probabilidade de machucar o mesmo dedão do pé esquerdo em menos três dias cai pelo menos 78%, logo perderá a chance de ter uma pequena, mas significativa cicatriz, de uma cidade que se acostumou deixar rastros naqueles que se atrevem a acreditar que estão a conhecendo. Ela, esta cidade, já te conhece bem mais.

*Trecho de Historias de cronopios y de famas, de Julio Cortázar

sábado, 10 de julho de 2010

Devaneios entre cinema, futebol e novela

A grua sobe lentamente acompanhando o passo do personagem. O movimento ganha um efeito épico também pela sombra multiplicada por quatro no chão. Atrás, alguns outros acompanham toda a caminhada com aflição. Vendo os penâltis de uma partida qualquer da copa observava como as transmissões dos jogos estão cada vez mais cinematográficas. Se naturalmente o futebol sempre teve sua própria estrutura narrativa com início, meio, surpresas, vilões, heróis e finais, agora as câmeras parecem saber captar melhor essa dinâmica de contar histórias. Os mais diferentes ângulos, as câmeras lentas captando pequenos detalhes de drama, de comédia, as reações dos coadjuvantes, da torcida se reconhecendo nos telões, dos jogadores enfeitados como atores... Tudo parece girar não apenas em torno da bola, mas também sob a idéia de uma construção de imagem, de uma complexa e enorme mise en scène. Provavelmente esse efeito tenha sido ampliado por estar acompanhando alguns dos jogos dentro de uma sala de cinema com 1.200 lugares. Aqui em Havana também tiveram a ótima idéia de transmitir os jogos nos cinemas a partir das oitavas de final. Como cinéfilo tentava entender essa exótica relação futebol/cinema, e como torcedor observava a torcida dos outros. No jogo do Brasil contra o Chile, por exemplo, havia uma massa verde amarela barulhenta composta principalmente por cubanos com algum tipo de simpatia pelo Brasil... Provavelmente um efeito dos sucesso que as novelas brasileiras fazem por aqui. Outro dia quase que vi um bloco inteiro de "A favorita" só pela graça de ver a dublagem ainda mais melodramatica de Flora. E eu que nunca sei o que dizer quando me perguntam sobre o bendito final. ", en Brasil hay también estes tipos raros que no ven novela, e peor, no entienden de fútbol." Mais raro ainda que assistir em Cuba essas minhas duas piores especialidades, é entender o quanto elas são absorvidas no cotidiano do país, elementos esses tão distantes da sua tradição cultural revolucionária. No final do último jogo brasileiro, entre os cubanos, reconhecia a presença de alguns compatriotas captando da multidão enfáticos "caralho!" entre outros termos técnicos depreciativos, enquanto era cada vez mais certa a eliminação da seleção canarinho. Realmente depois de acompanhar as dramáticas eliminações de Gana e de todas as equipes que eu tinha alguma torcida compreendo um pouco mais os cubanos que torceram pro Brasil, pra Espanha, que assistem novela, e que questionam minha identidade brasileira. Certamente ambos os lados, por diferentes meios, estão buscando ampliar essa tal identidade, como uma maneira talvez de respirar e entender o resto do mundo, que pra eles se faz tão presente através do turismo. Se eles não podem viajar com tanta facilidade como os outros, vão fazê-lo vendo novelas, filmes, usando Nike, e tudo aquilo que aparentemente os mantenha conectados. Essa maneira de troca me parece um pouco perversa, afinal todo um diálogo acaba enquadrado em um modelo de porta entre-aberta.

Mas espera, estava tentando falar de outra coisa... Acabou e o Uruguai acaba de perder... Merda! Vou no cinema, agora ver um filme.

domingo, 4 de julho de 2010

Da baía à ilha – o alívio triunfante de se perder

Havia três dias que eu estava tomando banho com xampu. Andei pelo menos meia hora atrás de um sabonete. Não encontrei. O melhor foi que justamente enquanto me perguntava onde realmente estava, uma mulher me parou na rua buscando informação. Devia estar andando com uma cara bastante confiante pra ela achar que eu sabia onde era a calle h con 17. Assim, mesmo quase perdido, me senti um pouco mais parte dessas ruas. Essas leviandades cotidianas me deixaram mais confortável por Havana, pelo menos nessas quadras ao meu redor. Provavelmente não há melhor modo de iniciar uma relação com uma cidade que se perdendo por ela... Depois claro, sentir o alívio triunfante de se encontrar sem ter que recorrer a um taxi. Fase vencida!
Logo aqui na frente tem uma praça com meninos que entusiasmados pela copa, correm atrás de uma bola do jeito mais improvisado possível. A mãe grita, espera, sorri. Do outro lado está um dos meus pontos de pesquisa, a Associação de escritores e artistas de Cuba. Quase que por sorte aluguei um quarto próximo das coisas que mais quero freqüentar. Há pelo menos dois cinemas próximos, e o Icaic também não está longe. Vedado é um bairro aparentemente residencial, mas que guarda todo tipo de surpresa em suas esquinas. Pequenos negócios familiares, como restaurantes ou quartos alugados para turistas e estudantes é parte do jeitinho cubano de aumentar o orçamento, com ou sem autorização do estado. As prostitutas se insinuam discretamente, outros oferecem charutos e eu ainda não desenvolvi um modo de recusar sem conversar tanto.
O quarto é confortável, grande e com móveis antigos. Sinto-me no quarto da minha Avó, e por isso acolhido. A cama tem espaço suficiente pra dormir nas posições em que os sonhos mais malucos exigem. Há uma poltrona, um pequeno abajur, ventilador e geladeira... Só me falta mesmo uma janela pra me manter em conexão direta com a rua. Ruas tão pulsantes, disformes, de passeios irregulares, dos clássicos carros dos anos 50, das pessoas falando alto em suas varandas.
Vou absorvendo uma pilha de palavras por dia, tanto que minha relação com o português agora praticamente se dá por esses escritos e por alguns livros que trouxe na mala. Outro dia li de uma só vez uma biografia que Aléxis Góis, um amigo do cineclube, escreveu sobre o cineasta Roberto Pires. Voltei à Salvador por algumas horas de uma maneira muito intensa, às vezes me dando conta onde estava, dando uma breve volta com olhar pelo quarto. Desse choque vi quantas pequenas conexões internas estava aos poucos construindo entre os dois lugares. Há muito que ver, que sentir...
Ontem encontrei sabonete enquanto buscava uma feira pra comprar frutas. Comprei dois, água e pasta de dente. Descobri que estou residindo justamente na rua em que a mulher de óculos vermelhos havia me perguntado naquele dia - calle h con 17.
Há muito que se perder...

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Um lugar, algumas idéias

Queria escrever um roteiro com uma antiga idéia. Uma mulher triste encontrava um diário e começa a fazer o mesmo que estava escrito nele. Iniciei os trabalhos, desenvolvi a tarefa dramática, fui percebendo o quanto aquela personagem era complexa, o quanto a história precisava de mais tempo, de outros diálogos internos. Outra idéia me piscou na cabeça justamente enquanto passava pelo “Camino del pensamiento” voltando pro apartamento da escola. Esse trajeto entre a sala de aula e quarto era sempre marcado por essa reconstrução do universo que eu desejava criar. Distante do movimento de Havana a escola é quase uma ilha dentro da ilha, uma mescla de manicômio criativo com campo de concentração do cinema. É o conhecimento, o estudo e a concentração convivendo com as poucas horas de sono, com a loucura das festas, com o conhecer os mais variados tipos de cabeças e nacionalidades. Acho que a Eictv é isso e algo mais escondido entre suas árvores... Um lugar que induz a criação permitindo suas crises. E isso não apenas pelas aulas e pelos professores incríveis, mas também por seus espaços amplos, sua arquitetura do contato, do olhar, da conversa fácil com outros tantos e consigo próprio. Um lugar onde a arte (quase) nunca dorme como Coppola pichou em uma das paredes do pátio. Havia gastado meses imaginando como seria essa experiência, tentando manter tais expectativas em níveis saudáveis de imaginação. Foi tentando traduzir “Bom senso” de Tim Maia pro Portuñol em uma mesa do café da escola para um russo de cabelo espetado, uma mexicana de olhos grandes e risonhos, um colombiano com cara de nerd andando de muletas, que percebi que nada que havia especulado teria chance de chegar perto daqueles momentos. As mudanças internas necessariamente tiveram que ser externadas das maneiras mais variadas... Os móveis do apartamento 314 foram mudados de lugar, a azulejo do banheiro riscado com um manifesto escatológico, a mesa carregada de papeis, canetas e garrafas, entre outros objetos não identificados. As portas também marcadas com os nomes dos membros – Eric (el psicopata), Gonsalvez (vulgo Satán), João (el singao), Ramón (pero sin queso), Andrés (la muleta) e Mauriño (el doble culo).
No último dia de curso o Professor Eliseo nos pediu para que lêssemos um trecho do nosso roteiro em sala. Deveria ser uma parte que pudesse resumir tudo aquilo que gostaríamos que os outros sentissem com a nossa história. Quase que automaticamente fui pra um trecho curto, um dos poucos momentos onde ouvimos o personagem:

O homem corre pela rua do povoado, olhando pra tras.
Mendigo (off)

Eu deveria estar longe, eu deveria estar só.Eu estaria melhor esquecido, mas o silêncio é difícil de achar, de colocar pra dentro. Eu tinha uma boa história, tão boa que me faria esquecer tudo. Tento lembrar, mas ela se perdeu de mim.

Acho que essa história de um mendigo tentando fugir dos próprios sonhos também já me acompanhava há algum tempo, quem sabe esperando um momento propício para ser desenvolvida. Acho que essas duas semanas respirando intensamente a Escuela me deixaram mais próximo de multiplicar essas brechas, alargar esses “momentos propícios” também pra outros lugares e instantes... Poder construir esses processos criativos sempre colados a ousadia de despertar idéias sem jamais separá-las dos lugares onde pisamos, do que sentimos e queremos realmente dizer. Talvez por isso que o título do meu roteiro tenha saído assim tão pretensioso - Eu sabia que você não conseguiria colocar o silêncio pra dentro.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

impossibilidades possíveis

Aqui parado olhando essas teclas fico pensando sobre uma idéia que tive uma vez. O início dela, mínima, meio besta, descompromissada, até a sensação da sua real concretização. Lembro do dia 11 de novembro que escrevi no alto do meu caderno verde: "Cuba: uma idéia (quem sabe um dia talvez...) !", e mais embaixo "hoje captei um objetivo concreto, empolgante e nem tanto distante - fazer um curso na escola de cinema naquela ilha que eu sonho em conhecer há anos...". Enfim depois de muitas viagens internas e externas, palavras, informações, emails, projetos, declarações, prazos, papeis e nervossísmos aqui estou em meio a intensidade da prática. Expectativas, pensamentos insônicos, euforia... Hoje, olhando o corredor da casa da Senhora Estilita Rodriguez, fiquei pensando que não há melhor coisa que ter uma vontade e achar a chance de praticar tais impossibilidades possíveis.
O cheiro de Havana agora me invade e me parece que nunca estarei pronto pra ela... e isso me encanta.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

O modo pelo qual a rua invade

Olá,
te escrevo agora assim não sei por qual razão, afinal falamos muito da última vez... Talvez seja essa noite estranhamente carregada de ventos barulhentos e mexidos. Talvez tenha sido por essa climática razão que minha necessidade de conversar com você tenha se intensificado (ou foi a desculpa mais rápida que pude encontrar agora). Que meio mais inadequado de reconhecer a solidão. Meu quarto está quase que completamente no escuro, salvo por pequenas luminescências externas. A lâmpada se foi há mais de uma semana e até agora não fiz nada a respeito além de ir ler na mesa da cozinha, recolhendo pequenos pedaços de qualquer pão ou biscoito que eventualmente invadem a página. Entre amigos, de Gabo. Ainda não comecei aquele livro que você me presenteou junto a um sorriso orgulhoso que surge raro, quando sabemos e planejamos causar certas satisfações, pequenos mimos. Sei que quando começar a ler vou lembrar daquele momento como se fosse parte da história do livro. Isso você sempre soube misturar, interferir. Ficções, sonhos, realidades.
Engraçado como venho observando essas sombras do meu quarto, de como essa ausência de claridade bem definida me lembrou uma época na qual estava meio obcecado pela infinita variabilidade e uso da luz. Observava o chão do ônibus invadido pelas incansáveis luzes da cidade, se sobrepondo, se ganhando a cada metro percorrido. O modo pelo qual a rua invade aqui através daquele poste distante. Vendo o filme do Guerín, Trem de sombras, percebi que essa beleza tão independente, cheia de si, imprevisível, poderia ser contemplada de maneira mais calma. Lembrei que você falou algo sobre um fotógrafo que realizou um ensaio com pessoas tentando trocar uma lâmpada em um quarto extremamente escuro. Ele devia estar atrás dessa errância, do cuidado com os passos, da impôrtancia, da sutileza do vulto, do pequeno relance, de algo que se vê, mas que logo se perde, se vai... Às vezes sinto essa sensação contigo, principalmente quando você me odeia. Você disse naquele daquela discussão que tinha medo que esse ódio fique de vez, enquanto eu pensava que aquilo não passava de uma quase-luz como a que esse fotógrafo buscava registrar na lente. Também queria registrar aquele seu ódio-vulto pra que depois pudéssemos contemplá-lo com desdém e gargalhadas. Quando estivermos longe sei que serão delas que iremos mais usar pra aliviar saudades. A distância acaba também prestando justiça as essas memórias melhores. E por falar nisso, você lembrou de deixar as chaves perto do abajur? Aliás ele também continua sem lâmpada ?!
A ventania até que passou mais agora, mas essa minha conversa fiada parece ainda toda cheia de horas pra se deixar perder.

Te aguardo em torno das seis no mesmo local que ontem, e me traz uma maçã.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Recife Frio – Por uma ciranda de todos

Logo na primeira imagem de Recife Frio percebemos que o diretor e crítico pernambucano Kleber Mendonça Filho parece buscar encaminhar seu curta-metragem através de uma espécie de estética do clichê. Como nas típicas ficções científicas apresenta um primeiro letreiro “Daqui há alguns anos…”, que logo se converte em um programa televisivo, mesclando estratégias documentais e ficcionais. Notadamente interessado em subverter tais gêneros cinematográficos Kleber conduz sua inusitada história, onde a capital pernambucana é tomada por uma brusca mudança climática, após a queda de um meteorito na praia.
O frio invade a cidade e traz consigo também a possibilidade de questionar o modo como as pessoas viviam antes e quais estratégias para lidar com a nova situação. A habilidade criativa do filme ao fazer uso de vários elementos narrativos e estéticos intensificam a elaboração de uma audaciosa crítica sobre os costumes e valores desses habitantes, de como desenvolvem suas relações e contatos. A intensa especulação imobiliária, as relações de classe, o consumo, o shopping center como espaço de socialização, entre outros elementos que a cidade reproduzia não parecem mudar como o clima, apenas variam os modos de manter uma mesma lógica cotidiana. Essa interpretação do diretor da cidade é carregada de irônia, um humor que surge justamente do lugar mais evitado: as ruas. A rua dos repentistas, do artesanato, da feira livre.
Onde estão as pessoas?, pergunta o repórter em espanhol. O modelo de reportagem televisiva norteia o filme através de um olhar estrangeiro, não apenas da equipe de reportagem que cobre tal fenômeno, mas também é compartilhada com o francês dono de uma pousada de praia. Esse elemento discursivo além de reforçar a sensação de frieza também questiona uma visão turística e comercial na qual a cidade há muito tempo foi condicionada.
Ao final, estrapolando os limites da câmera documental e distante Kleber Mendonça parece apontar pra uma possibilidade, reaproximando com o contato simples das mãos dadas, girando em uma ciranda regida por Lia de Itamaracá, em uma praia gélida, contrastando com a cena inicial onde um violão é ensacado por uma equipe de cientistas. Essa arte fora dos enquadramentos das vitrines, dos conceitos, da estéril segregação, comunicando uma efervescência popular capaz de revelar pontos de luz e calor, mesmo diante da desumanização fria do concreto.

sábado, 22 de maio de 2010

Pequenas reflexões sobre o silêncio

-Amigos. Desejaria tê-los, ao menos que fosse um, já seria de bom desejo. Um que fosse para me distrair. Tornar-me-ia impaciente e expulsá-lo eu ia para sua casa. Seria ele entendido da minha agressão. Amigos não se queixam dessas agressões, pois a amizade sabe se proteger das feridas do ego e isso contribui uma ótima compreensão da parte deles. Nem precisam se mostrar por pensadores maçantes estes, basta o meu ato para que captem todo o universo à volta. Tenho, porém, infelicitado silêncio. Confesso-me que é bom, é meditado quando se sabe dosar na cumplicidade do equilíbrio. Porém, como às vezes se faz por amigo, agora o mando para o inferno calamitoso, e ele me responde com ele próprio: o silêncio. Sinto-me desajeitado, falta-me a honra que sempre me fiz gabar. Ausenta-me o brilho dos olhos de quando era um infantil, o que tenho a estes é a secura de um abestalhado. O silêncio, agora volto a uma nova reflexão sobre este que me apareceu neste segundo, é o eco de si próprio. Quero dizer que nada nele ressona e se grito no seu interior, nada da minha voz é ecoada. O silêncio é imbatível, possui constituído nele, pelas forças da natureza, a barreira inquebrável e suprema, dominante e macabra. O silêncio é silencioso. Venho a pensar também que o silêncio não é a falta de som, o que é elegantemente impossível, porém é o conjunto de sons que já nos são imperceptíveis e insignificantes. Um galo do meu vizinho me canta um “Glogó” em bom som, alto demais para ser imperceptível, sempre às quatro da madrugada, mas já é por mim decretado silêncio. Se ele canta, eu já sei que se trata do galo “Glogó” do vizinho, com o mesmo “Glogó” decorado e cantado da mesma forma. Porém se um dia o galo, por desânimos da vida, morrer, o que parece ser a lacuna para o silêncio – a falta de sua cantoria em “Glogó” – torna-se um sábio barulho da ausência. O silêncio, contradigo-me à idéia anterior - mas sem desprezá-la - é barulho.


-Sou um bom desocupado. Sinto-me auto venerado por isso. Outrora me coloquei disposto à concentração do barulho dos pássaros. Deitei-me no pé da árvore, servia esta de morada para uns tantos pássaros, que eram estes em quantidade bastante para que me servisse o experimento. O som dos pássaros era só o som deles mesmos. Deleitei-me, após cansativos tempos de apreciação, em não mais ouvi-los como pássaros. Era agora o canto dos ratos se acasalando. Após reflexivos tempos de apreciação, o que era o canto dos roedores transformou-se em choro canino, em canto dos pneus freados... o susto que tomei, tomei o tal como embalo para novas surpresas. É verdade, não posso esconder os fatos, que o canto dos pneus freados persistiu com muita vontade de não sair da minha mente. Porém seguiram-se horas - até dias, para quem crê num pouco de absurdo verdadeiro e que o tempo seja tão relativo – e eu já era capaz de ouvir no canto dos pássaros o barulho do mar, de crianças no piquenique, mulheres risonhas, tiroteio no velho oeste... e então, assombrei-me: o silêncio. O entusiasmo me fez esquecer-me deste, tirano impiedoso, que me fez lembrar que não tenho amigos.


-Descobri uns ontens atrás que o silêncio é a falta de significado. Tentei me impor ao meu inimigo. Passei o dia da manhã gritando, cantando e em conversas altas para mim mesmo. Não usei a arma certa. Calei-me por me achar abestalhado; também conversar comigo mesmo só me lembrou o que eu já sabia que me falta um ombro amigo. Falar e cantar perdeu significado para mim, portando virou silêncio ao me calar. Para meus vizinhos houve um significado importante, fato que não os fez entender meus gritos como silenciosos. Gritaram enraivados até os nervos, dando de volta o que os entreguei. Tive uma confiante lição de que gritar frases sem explicação nos toma como loucos, fato este que desprezo enquanto creio haver razão no meu corpo. Compreendi também que do silêncio não há fuga. Se você tenta combater faz por parecer a si mesmo como um tolo abestalhado e com vergonha do próprio ato.


Por: Sonho Estranho

sábado, 15 de maio de 2010

Pra que rimar....

Era madrugada.
Ela tocava sua barriga levemente suada, sentindo o vento lerdo do ventilador ao lado... Ia do umbigo até a ponta do nariz, riscando lento com o dedo. Depois de gozar o melhor pra ela era ficar passeando com a mão sob a barriga suada, olhando aquele teto de quarto riscado. Era a segunda vez que ouviam Caetano cantar "pra que rimar amor e dor?" naquela noite. Nos últimos tempos eles sempre ouviam Transa do Caetano enquanto transavam. Ela nem gostava daquele disco no princípio quando ele colocava pra tocar, denunciando desejos. Aos poucos ela foi se apegando a certos momentos, melodias, mudanças de tom, marcando seu prazer junto as músicas. Ficavam de You don't know me até a metade de Triste Bahia, se chupando e se arrepiando, gargalhando e falando qualquer absurdo que lhes surgisse. Era justamente quando a música ficava mais lenta que eles se aceleravam. Gostavam desses contrastes... Dançando fora do ritmo, se entregando ao descontrole. Ela sempre tentava colocar um pedaço da pele na parede ou no chão frio pra contrastar com o quente do corpo trêmulo. Quando o disco começava a tocar pela segunda vez ela já era vermelha, por cima, cantava seus gemidos quase que tão altos como os de Caetano em Nine Out Of Ten, mas sempre segurava até It's a Long Way, e logo aí um pouco depois já se cansava de limites, se largando ao prazer sem nome, no desconhecimento de si, da música, dele, da cama... tudo era uma coisa só. Era o sinal pra ele a acompanhar.
Ficavam depois curtindo seus cantos com dentes e dedos. Barriga, pé, nariz. Cantando baixinho Mora na filosofia, um pro outro, atuando ridículos pra si próprios. Pra que rimar amor e dor? Pra ela, naquele momento a música tinha se convertido em sua música favorita.
- Ouvir transa enquanto transamos... Engraçado. - Disse ela.
- Olha aí como somos pessoas descoladas, passa o óculos escuros.
- Pare, besta.
- É sério. Caetano as vezes sabe entreter.
- Mesmo tão triste.
- Sei que esse nome ele colocou na época por causa da Transamazônica, li em algum lugar.
- Pô, então é mais protesto que sexo?! Que saco...
- Vale pros dois. Sexo com protesto.
- É, boa! Se fosse assim tão bom ter prazer e ainda assim tentar mudar as coisas.
- Já foi.
- É, já... Agora parece o inverso.

Ainda trocaram algumas palavras banais. Ela se estica até não poder mais, ele da janela olha a rua molhada, ordinária como sempre lhe pareceu. Ficam ali, longe de si, ouvindo Neolithinc Man com pensamentos que sempre seguem conversas sem fins objetivos. Minutos depois de Nostalgia, se ajeitam, se banham, se deitam antes de lembrar que existe amanhecer.

- Próxima vez quero Mutantes. - Disse ela.
- Ok, podemos fazer uma revisão sexual da música popular brasileira.
- Fechado... Depois rodamos pelo mundo.

Riram juntos, dormiram.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Utopia, barbárie e nossa provável condição


Memória como espaço de luta


Meio século, duas horas.
As cenas se entrelaçam, rapidamente somos tomados pelos mais belos discursos revolucionários, as mais perversas imagens de barbárie. Isso é cinema, isso é história. Reflexão em movimento que Silvio Tendler busca nos evocar com seu último filme: Utopia e Barbárie. Haveria título mais apropriado para a nossa recente história?! (Talvez, se Hobsbawm já não tivesse utilizado a Era dos extremos)
O filme é uma efusiva interpretação de Tendler, tendo sua biografia marcada pelas transformações da segunda metade do século XX. Ao longo de quase vinte anos coletou imagens, colou com tantas outras (algumas já clássicas, outras reveladoras) construindo seu grande mosaico historiobiocinematografico. Ao se colocar como personagem do seu próprio filme o diretor reivindica seu espaço como sujeito histórico se utilizando de duas grandes ferramentas de luta: cinema e memória. Através dos mais variados relatos, alguns mais dolorosos que algumas imagens, Tendler envolve nessa memória coletiva escritores, poetas, cineastas, atrizes, pessoas comuns, entre outros, pra repensar e revisar toda essa história.
Da bomba atômica à primavera de Praga, de maio de 68 às ditaduras latino americanas o filme se entrega as contradições, reviravoltas, possibilidades do nosso tempo, que por uns instântes parecem encerradas, nos deixando apenas com um revoltado palavrão na cabeça. Uma mãe anda de um lado para outro, enlouquecida pelo trágico carrega e nina seu bebê sem cabeça em meio a guerra atordoante.

Onde estamos todos nisso tudo?!
Sentado na cadeira do cinema, tonto largado em meio a tanto, sou apenas um espectador reagindo aquilo que não vivi, mas sentindo todo aquele reflexo por cada canto da minha própria história. Utopia e Barbárie nos estimula posição, ação, exige esperança, e acima de tudo, a noção de memória que tanto é repetida ao longo da película. Questões estéticas e estruturais do roteiro parecem deixadas em segundo plano em nome dessa chamada.
Augusto Boal diz que memória e imaginação são dois processos que não se separam... então quais alternativas podemos criar a partir das nossas noções sobre esse passado? Temos alguma utopia? A geração 2000, nascida na pós-ditadura, criada com a sessão da tarde agora parece ter como maior sonho justamente aquilo que foi questionado anteriormente. Beber, cair e levantar no posto de gasolina mais próximo?! O que mais temos a oferecer ao futuro da história além de pertencer a essa zona enlatada de consumo acomodado? Até mesmo o movimento estudantil parece se perder em meio a própria artilharia, repetindo equívocos que o desespero pelo poder condicionou o ato político. As trocas de acusações continuam surdando o interesse comum.
Enquanto isso os questionamentos vão ficando ainda mais apocalípticos. Socialismo renovado ou mais barbárie dominante? Ivete ou Claudia Leite? Lento processo, respostas que o filme de Tendler sabiamente não pretende se desafiar a inventar, mas sim se incorporando como provocação, reapresentando um caos nascido da insistência por mudanças.
As revoluções seguem, agora fragmentadas na porta de casa, na ponta dos dedos, na desconfiança da imagem, no sentido dos passos. Deus, Marx, Freud, Boal e tantos outros morreram e ainda não continuamos nos sentindo muito bem??
Além dessas tantas interrogações um vasto ponto de continuação nos é entregue ao som de uma caixinha de música, e basta escolher agora a dança que irá nos ajudar a preencher e reinventar de novo, novamente e mais outra vez nossa provável condição.

por: ramon coutinho