terça-feira, 16 de agosto de 2011

A Melancolia do fim em prol do equilíbrio

É de expansão que Lars Von Trier vive. A chegada de Melancolia é a prova da constante dilatação do seu cinema. Depois de uma crítica frontal a América - Dançando no Escuro, Dogville, Manderlay - as aflições e imagens de Lars parecem querer dar conta da nossa complexa humanidade como um todo, crecendo para além da pequenez terrena. Se Anticristo buscou de modo tão cru interrogar a natureza fazendo uma releitura de nossa gênese e história, agora é do princípio do fim que o diretor questiona nossa existência.

Melancolia é norteado (como é hábito na cinematografia do diretor) através dos poderes femininos e sua intensa ligação com a natureza, com o cosmos. Nesse sentido o filme é quase uma continuação de Anticristo, do mesmo modo que a fotografia e o tom das cores dão uma densidade visual em cada sequencia. A clara diferença entre os filmes está no ritmo, afinal há tempo e calma pra se pensar Melancolia, permitindo um deslumbramento mesmo diante da agustia crescente – como na cena em que os personagens observam a proximidade do planeta. O tempo de Anticristo se desenrola sobre o efeito do choque, da confrontação com a dor excessiva. Agora, depois que o elo entre homem e mulher foi cortado no filme anterior, a personagem principal parece livre para sentir o mundo ao seu modo, sem um vínculo preso as condições terrestres, como a Mulher atada de Anticristo. Ela renasce aqui não pra promover um acerto de contas, mas pra um doloroso amadurecimento. As primeiras cenas já nos entregam com a precisão de uma câmera super lenta todo o início-meio-fim do filme, para daí sim seguir um trajeto trépido com uma câmera na mão, incerta em meio a tantos significados.

Lars nos brinda com uma metáfora da extinção interna, sentimental, engolidos de vez pela gigantesca depressão e melancolia que sempre nos cercou. O sentido duplo do título do filme parece indicar que nesse tal apocalipse há uma clara responsabilidade terrestre, culpa da estupidez por basear nossa existência no exercício do domínio e poder, e não no equilíbrio entre todas as forças. As histórias do diretor sempre perseguiram essa anomalia humana de vencer sobre o outro: a escravidão em Manderlay, o imperialismo disfarçado de boa vizinhança em Dogville, a injusta justiça de Dançando no escuro, a religião e o machismo em Ondas do destino. Aliás é com esse último que Melancolia parece construir também um evidente diálogo. Além do casamento que iniciam ambos os filmes, as personagens principais possuem capacidades sobrenaturais que determinam suas práticas. Se Bess clama e realiza suas vontades nas confissões com Deus – mesmo no mais alto teor de sacrifício – Justine possui uma clarividência que lhe integra plenamente ao universo.

A nudez da personagem na floresta é a constatação da sua sabedoria e descoberta, sem antes, claro, passar por um confuso percurso de desconstrução. É disso que a primeira parte de Melancolia se debruça. Lars faz uso do clássico ritual matrimonial para exibir o palco perfeito das invenções de um futuro próspero, que maqueia a verdade em um jogo de poder e aparência. Daí as peças, espaços e personagens do diretor vão encontrando seus lugares para deixarem suas máscaras, revelando suas reais simbologias. O cunhado de Justine é o homem arrogante iludido pela crença na opulência e no conhecimento científico. Inseguro ao ponto de tentar expulsar a figura que mais ameaça seu poder: a mãe de Justine, ácida e pessimista, já farta de todo aquele "teatro" que não durará para sempre.

A alegria do casamento se confunde todo tempo com a estranha sensação do temor e insegurança da noiva. Quando essa aflição lhe leva a ficar sozinha no quarto ela subitamente reorganiza os livros na estante com pinturas de morte, invasão, fim... As figuras são como cartas postas na mesa que agora lhe enche da dolorosa responsabilidade de saber. Ela busca um diálogo com o noivo, com a mãe, com o pai, mas sem sucesso se entrega a rédia da impulsividade. A partir dessa armagedônica certeza ela irá ironicamente se salvar das hipocrisias das convenções sociais - um casamento vazio, um emprego que lhe rouba a vida. O pai-deus com sua adorável simpatia não perde a chance de se ausentar (como de costume) quando acha a primeira carona, fugindo de conceder amparo e conforto, mesmo depois que Justine lhe implore presença. Uma paralítica depressão lhe invade a partir da segunda parte do filme, e só após o diálogo com a irmã, na mesa de jantar, sua postura muda radicalmente com o que está por vir: "A vida só existe na terra, e não por muito tempo". A irmã Claire tem algo a perder por isso teme, pondera, sofre, tenta manter uma esperança desesperada, como provavelmente muitos de nós faria.
A influência de Bergman (Persona) e principalmente de Tarkovski ficam ainda mais perceptíveis, tendo como referência óbvia "Solaris"(1972), do mesmo modo que outro filme remete aos temas fundamentais de "O Sacrifício" (1986), último filme do diretor russo. Esse diálogo com outras obras extrapola o cinema e resgata ainda pinturas pré-rafaelitas na construção de uma fotografia exuberante.
John Everett Millais - Ophelia
Como no esquete inicial nos indica, a trindade formada pelo menino alinhado a lua, Justine com o planeta Melancolia e Claire como representante da Terra - não à toa é a mesma atriz (Charlotte Gainsbourg) que conduz a união mãe-natureza em Anticristo - serão os que resistirão a colisão do planeta protegidos pela capacidade de encarar a situação. Do mesmo modo que as irmãs, uma nova união cósmica entre terra e universo precisa se consumar, não por uma lógica meramente casual ou física, mas pela atração dos corpos que necessitam acima de tudo manter um imenso equilíbrio e harmonia, deixado ínfima nossa mesquinhez e maldade.