terça-feira, 29 de novembro de 2011

Não há vagas nos estacionamentos


Não há vagas nos estacionamentos
Tão pouco há vagas nas ruas.
Não há vaga em canto algum,
Nem para os carros
Nem para o olhar da moça ao outro lado.

Vagam os gestos pelos olhos de outros,
E não existe vaga que já não fosse de outro.
Definitivamente, não existe preço melhor a pagar
Do que o preço da falta de vagas a pagar.

Não há vagas, nem mesmo nas lojas
Onde se diz em palavras garrafais: há vagas para clientes
Sem vagas.
Não existem as vagas,
Vaga-lumes-divagares na acepção mais vaga da palavra.

Há vagas sim. E há vagas não.
Pelas vagas dos que vagam perdidamente pelas várzeas,
Largas vagas que nos restam nas esquinas Vargas.
E se existem mais Vagas do que anúncios,
Sempre mais vagas hão de existir que Getúlio.

Eu sei que há vagas e ponto final.
E mesmo que ninguém diga que saiba,
Eu sei das vagas, das caras, ruas e praças.
Eu sei da vaga madrugada

Pelas ruas vazias,
Onde qualquer vagabundo,
É mais vaga-lume do que quem diz.
E vagueando pela praça,
Apertando o vaso constrito desse cópia-poema,
Olheio o vago sujeito composto,
O primeiro desse justo-esboço.

E há uma vaga-novembro nesse exato momento,
Desavisada e oca, vaza-poema.
Desencaixada, vaga e rouca,
Poucas palavras,
Largo-pobre-vago-poema.

(Francisco Gabriel Rego)

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Ela divagou naquela tarde amarela sobre um destino encardido e torto que lhe empurrava  sempre pro lado mais errado. Silêncio. E Dindón lhe disse:- Menina besta, é nas entranhas que a loucura é diluída ... pare confundir e esquecer suas escolhas erradas...
Sim, ela respondeu, mas só, à noite, pra o seu travesseiro rosado: 
- Se é errada é porque tenho que esconder que é escolha. Uma coisa ou outra...
Inventou a certeza que só podia alimentar umas delas: a angústia ou a possibilidade de continuar vivendo. Nessa noite sonhou que era criada por uma hiena triste.

pág. 239 "O laço que prendeu meu cabelos enforcou meus filhos", Álvina Tropero.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Frases de um membro frouxo num percurso de deus


A cidade estava de novo moldada pelo aço febril do sol: a curva das coisas, o modo que as pessoas andavam se esbarrando nos barulhos, nas disputas, na simples tentativa de atravessar de lado nas calçadas abarrotadas. Competiam entre si e o calor, expandindo os corpos com aquela velha e ordinária tentativa de existir de um modo menos desconfortável. Depois de ler três vezes a mesma frase acabei compreendendo melhor o absurdo das palavras, daquelas observações banais. “Apimente a sua relação”. Um letreiro publicitário em vermelho alardeava um curso de pompoarismo revolucionário. Ri de canto. O homem perto do sinal estava concentrado, com a cabeça curvada em direção ao meio das pernas, sujando de mijo um muro com um grafite colorido com outra oração déjà vu : “Penso, logo stencil”. Fiquei imaginando aquelas mulheres em uma sala com ar condicionado barulhento, se observando, pensando na elasticidade vaginal da colega da esquerda. Antes de sair o homem ainda cuspiu no chão, trocando de membro, atendeu o celular. Como deformar uma coisa deformada? A arte se contorce, dolorosa. Será que o comando mental sobre o músculo pubococcígeo, nos músculos circunvaginais e nos grandes lábios da vulva ajudam mesmo? Concentrei, saí da cena, lembrei: Foi toda esticada que a mão dela resolveu pousar sobre minhas costas úmidas... meio flor, meio radar… era querer saber demais de minhas excitações sudoríparas, mas rimos, cúmplices, sem saber muito porquê. Minha intimidade convertida em suor, explícito, confundindo a beleza de sentir poros dormentes com a buzina atroz que me jogava de novo naquela luz exagerada, que expulsava e tragava pro mesmo lugar, mesmo percurso. De qualquer sorte absorvi – nutrido – melhor o redor, mas querendo chuva, chuva sem derrubar a casa de ninguém, sem dar medo pra ninguém, mas desejando mais a forma molhada, fluída e refletida das coisas. Eu era ali um grande lábio desestimulado, cansado da mesma posição na hora do sexo besta, cotidiano. A cidade era aquele mijo secando no sol. Resgatar o escuro, tateando a memória e deformando o que deus criou era o único modo de vencer de novo aquele percurso dormente. 


Ps: Em homenagem ao ônibus Barra 3

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Li na página vinte

E embora não houvesse crianças brincando, nem pombas, nem telhados azuis, senti que o povoado vivia. E que se eu escutava somente o silêncio era porque ainda não estava acostumado ao silêncio; talvez porque minha cabeça viesse cheia de ruídos e de vozes. De vozes, sim. E aqui, onde o ar era escasso, ouvia-se melhor essas vozes. Ficavam dentro da gente, pesadas. Recordei o que minha mãe me dissera: "Lá, você me ouvirá melhor. Estarei mais perto de você. Você irá sentir mais perto a minha voz de minhas lembranças do que a da minha morte, se é que algum dia a morte teve voz". Minha mãe... a viva.


Pedro Páramo, Juan Rulfo