sábado, 26 de dezembro de 2009

saber quem eu sou LÁ

up (pixar)

"quero encontrar a ilha desconhecida,
quero saber quem sou eu quando nela estiver,
(...) Se não sais de ti, não chegas a saber
quem és"

O conto da Ilha desconhecida, José Saramago (Pag.40)

sábado, 12 de dezembro de 2009

Sobre um longínquo e afetuoso gesto

"O mundo inteiro é um saco de merda se rasgando. Não posso salvá-lo." *

Foi ali que desistiu... Pluft!
Engasgada em pensamentos perdeu simplesmente toda a crença na humanidade enquanto olhava a rua pela janela do ônibus, meditando sobre a pessoa que durante um bom tempo havia sido a sua preferida. A cidade contorcida pela velocidade parecia cenário perfeito para análise daquelas fúnebres conclusões. Uma mosca se debatia no vidro da janela e parecia ter a síntese perfeita do que ela ali acreditava ser nossa penosa condição - "Nos debateremos sempre na tentativa de voar". Se há, mesmo nas pessoas que mais nos dedicamos e acreditamos, um ímpeto de enganar, omitir, simular, o que seria então daquele resto de gente que passa como cenário borrado na janela do ônibus, que nunca conheceremos, que nunca doaremos um gesto?!
Desdenhando de si, lembrou do quanto acreditava que em cada um havia possibilidade de conceder ao mundo uma beleza, mínima, mas intensa, capaz de direcionar tudo pra um bem maior. Não eram nas grandes revoluções que ela acreditava, mas nessas raras almas que pareciam impedir que enxergássemos a cólera desmedida, que mesmo em qualquer esquina, o mundo é sempre capaz de propagar. Seria só nas pessoas que nos encantavam e apeteciam, que essa responsabilidade tão nobre seria possível. Por aí então estaríamos interferindo em todo o resto (naqueles borrados rostos que nunca conheceremos), partilhando de um longínquo e afetuoso gesto. Era nesse trabalho humanitário que ela acreditava até então. Antes daquilo...
O suor frio que aflorava de sua testa parecia expulsar ali todo o romantismo manco que tanto adorou se enganar. Foi Bukowski* que lhe veio como força teórica pra legitimar e suavizar seu choque.
Ali, naquele instante evasivo, era apenas na plena descrença que queria se apegar, rindo das irônicas forças que regem a natureza humana, de sua capacidade de auto-sabotagem. Lembrou que certa vez observava um velho observar as crianças num parque, onde delirante soluçava baixinho: "é a continuidade trágica... um dia serão monstros como nós". Se antes velho delirante, agora, ali, o velho era um gênio, niilista sim, porém profeticamente corajoso.
Certificava-se de um medo antigo, de que cada um, mais cedo ou mais tarde, haveria de encontrar sua própria forma de atrapalhar/destruir o outro, e o resto continuaria ainda mais comprometido. Assim, entre tantos conflitos e certezas, minha imagem continuava piscando em seu córtex cerebral. Acusado, culpado e condenado por ter lhe roubado aquela idílica relação com o mundo, visão essa que tanto desqualifiquei, mas que cá entre minhas contradições invejava tanto.
Gostaria de mudar tudo aquilo, gostaria de entrar naquele ônibus e fazê-la rir como antes, como quando meu abraço tinha um peso confortável, capaz de dilatar longamente o tempo e o espaço pra uma zona só nossa. Gostaria de ser todos, tudo que ela olhava, cada rosto, cada desconhecido, para imprimir neles, disfarçadamente, um lado que ela gostava tanto de se alimentar, para que assim resgatando sua utopia, pudesse fazer esquecer cada equívoco e falta de cuidado que tive.
Como aquele mosca que ela observa no vidro do ônibus, me deparo com uma histérica paralisia, culpa e arrependimento por ter tirado de quem mais gosto a capacidade que tanto me falta, e a todo resto, de realmente vislumbrar possibilidades mútuas, mais do que apenas esperar que o saco de merda se rasgue sobre tudo.



Lugares-de-coisas-fartas (Pág. 98)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

reinaugurando memórias

esqueci tudo... e por alguns instântes me pareceu o maior dos prazeres. sem pena, esquecer... deixei essa ilusão se apoderar de cada canto, pêlo e contorno de mim. de cada coisa que eu olhava uma impressão explosiva de renascença me encobria, como se tudo acabasse de surgir. toquei cuidadosamente cada objeto, cada folha, busquei o chão, pisei firme, alisei suas frestas. busquei o rosto, havia ele cá o mesmo, encaixado com as mesmas pretuberâncias e buracos, mas que parecia naquele momento a superfície mais virgem, se lavando no vento quente do ventilador... era o meu lugar mais antigo, mas o quarto havia se convertido em novos aromas, poeiras, que eram ali a própria pele das novidades. deitei piscante e captando algumas cores. o verde. verde era a capa do caderno, puxei, abri sob meu colo. revelou-se tudo outra vez. voltei... voltei pra última página do livro que acabara de acabar. Mãos de cavalo, de Daniel Galera. a repentina ausência de si parecia necessária naquela noite de agosto. era preciso responder ao que foi lido mais do que com pensamentos e impressões, era preciso tornar físico o ato de esquecer. cessar as próprias memórias por algumas dezenas de segundos, deixando depois que todas elas, desordenadas, livres, se misturassem agoniadas.
(todos os primos descendo de bicicleta desesperadamente a mítica ladeira de Dega, talvez atrás de uma cicatriz, buscando do mundo alguma agressão; minha avó falante contando histórias na mesa do café, enquanto eu tentava imaginar cada cena; o momento exato do batismo no ginásio com o apelido que me perseguiu por tempos).
meses depois assisti Morro do céu, documentário de Gustavo Spolidoro.
a reação pós-filme foi contrária a do livro: andar e conversar com meu irmão na rua. mesmo num processo diferente, aconteceu a mesma sensação de revisita das próprias memórias através de outras. lembrei do livro, de como me senti depois, de como não havia escrito nada além de umas poesias toscas à respeito.
são ambas obras simples, sem maiores rebuscamentos ou revoluções narrativas, mas com uma imensa capacidade de comunicar, de atravessar as barreiras que tanto buscamos na arte. Spolidoro e Galera parecem ter em seus personagens uma forma de guardar e rememorar suas próprias infâncias e adolescências... contando outras histórias, acabam contando as suas próprias. e eu cá. assim personagens, autores e leitores, todos acabam unidos em uma enorme memória coletiva, pulsante, capaz. às vezes acho que todo artista só responde as suas influências e ao seu próprio passado quando inventa algo. poderia citar ainda O espelho, de Tarkovsky
ou ainda Infância, de Graciliano Ramos, ou tantas obras que se baseiam nesse exercício de recordar pra recriar... no entanto Mãos de cavalo e Morro do céu parecem mais próximos de minhas limitações e pretensões em lidar com palavras e imagens. enxergo os autores mais como amigos, do que como mestres.
a simulação de uma amnésia redentora foi provocada ironicamente desse medo
em esquecer determinados momentos e detalhes, como se pudesse controlar a intrincada teia do esquecer/lembrar. como se houvesse chance de reinaugurar a atenção e a importância dos momentos mais simples que formam hoje outros mais importantes. parafraseando Borges (aquele mesmo J.L.) devemos fazer da vida, da literatura e do cinema espaços essencialmente alimentados pelos sonhos, que por excelência são os melhores arquivos e misturadores das recordações.

me restou deitar piscante, dormi e sonhei em preto e branco com um menino banguelo perguntando: "quanto custa essa camêra de filmar sonho?"