esqueci tudo... e por alguns instântes me pareceu o maior dos prazeres. sem pena, esquecer... deixei essa ilusão se apoderar de cada canto, pêlo e contorno de mim. de cada coisa que eu olhava uma impressão explosiva de renascença me encobria, como se tudo acabasse de surgir. toquei cuidadosamente cada objeto, cada folha, busquei o chão, pisei firme, alisei suas frestas. busquei o rosto, havia ele cá o mesmo, encaixado com as mesmas pretuberâncias e buracos, mas que parecia naquele momento a superfície mais virgem, se lavando no vento quente do ventilador... era o meu lugar mais antigo, mas o quarto havia se convertido em novos aromas, poeiras, que eram ali a própria pele das novidades. deitei piscante e captando algumas cores. o verde. verde era a capa do caderno, puxei, abri sob meu colo. revelou-se tudo outra vez. voltei... voltei pra última página do livro que acabara de acabar. Mãos de cavalo, de Daniel Galera. a repentina ausência de si parecia necessária naquela noite de agosto. era preciso responder ao que foi lido mais do que com pensamentos e impressões, era preciso tornar físico o ato de esquecer. cessar as próprias memórias por algumas dezenas de segundos, deixando depois que todas elas, desordenadas, livres, se misturassem agoniadas.
(todos os primos descendo de bicicleta desesperadamente a mítica ladeira de Dega, talvez atrás de uma cicatriz, buscando do mundo alguma agressão; minha avó falante contando histórias na mesa do café, enquanto eu tentava imaginar cada cena; o momento exato do batismo no ginásio com o apelido que me perseguiu por tempos).
meses depois assisti Morro do céu, documentário de Gustavo Spolidoro. a reação pós-filme foi contrária a do livro: andar e conversar com meu irmão na rua. mesmo num processo diferente, aconteceu a mesma sensação de revisita das próprias memórias através de outras. lembrei do livro, de como me senti depois, de como não havia escrito nada além de umas poesias toscas à respeito.
são ambas obras simples, sem maiores rebuscamentos ou revoluções narrativas, mas com uma imensa capacidade de comunicar, de atravessar as barreiras que tanto buscamos na arte. Spolidoro e Galera parecem ter em seus personagens uma forma de guardar e rememorar suas próprias infâncias e adolescências... contando outras histórias, acabam contando as suas próprias. e eu cá. assim personagens, autores e leitores, todos acabam unidos em uma enorme memória coletiva, pulsante, capaz. às vezes acho que todo artista só responde as suas influências e ao seu próprio passado quando inventa algo. poderia citar ainda O espelho, de Tarkovsky ou ainda Infância, de Graciliano Ramos, ou tantas obras que se baseiam nesse exercício de recordar pra recriar... no entanto Mãos de cavalo e Morro do céu parecem mais próximos de minhas limitações e pretensões em lidar com palavras e imagens. enxergo os autores mais como amigos, do que como mestres.
a simulação de uma amnésia redentora foi provocada ironicamente desse medo em esquecer determinados momentos e detalhes, como se pudesse controlar a intrincada teia do esquecer/lembrar. como se houvesse chance de reinaugurar a atenção e a importância dos momentos mais simples que formam hoje outros mais importantes. parafraseando Borges (aquele mesmo J.L.) devemos fazer da vida, da literatura e do cinema espaços essencialmente alimentados pelos sonhos, que por excelência são os melhores arquivos e misturadores das recordações.
me restou deitar piscante, dormi e sonhei em preto e branco com um menino banguelo perguntando: "quanto custa essa camêra de filmar sonho?"
(todos os primos descendo de bicicleta desesperadamente a mítica ladeira de Dega, talvez atrás de uma cicatriz, buscando do mundo alguma agressão; minha avó falante contando histórias na mesa do café, enquanto eu tentava imaginar cada cena; o momento exato do batismo no ginásio com o apelido que me perseguiu por tempos).
meses depois assisti Morro do céu, documentário de Gustavo Spolidoro. a reação pós-filme foi contrária a do livro: andar e conversar com meu irmão na rua. mesmo num processo diferente, aconteceu a mesma sensação de revisita das próprias memórias através de outras. lembrei do livro, de como me senti depois, de como não havia escrito nada além de umas poesias toscas à respeito.
são ambas obras simples, sem maiores rebuscamentos ou revoluções narrativas, mas com uma imensa capacidade de comunicar, de atravessar as barreiras que tanto buscamos na arte. Spolidoro e Galera parecem ter em seus personagens uma forma de guardar e rememorar suas próprias infâncias e adolescências... contando outras histórias, acabam contando as suas próprias. e eu cá. assim personagens, autores e leitores, todos acabam unidos em uma enorme memória coletiva, pulsante, capaz. às vezes acho que todo artista só responde as suas influências e ao seu próprio passado quando inventa algo. poderia citar ainda O espelho, de Tarkovsky ou ainda Infância, de Graciliano Ramos, ou tantas obras que se baseiam nesse exercício de recordar pra recriar... no entanto Mãos de cavalo e Morro do céu parecem mais próximos de minhas limitações e pretensões em lidar com palavras e imagens. enxergo os autores mais como amigos, do que como mestres.
a simulação de uma amnésia redentora foi provocada ironicamente desse medo em esquecer determinados momentos e detalhes, como se pudesse controlar a intrincada teia do esquecer/lembrar. como se houvesse chance de reinaugurar a atenção e a importância dos momentos mais simples que formam hoje outros mais importantes. parafraseando Borges (aquele mesmo J.L.) devemos fazer da vida, da literatura e do cinema espaços essencialmente alimentados pelos sonhos, que por excelência são os melhores arquivos e misturadores das recordações.
me restou deitar piscante, dormi e sonhei em preto e branco com um menino banguelo perguntando: "quanto custa essa camêra de filmar sonho?"
6 comentários:
Cara,
sua escrita é foda!
Toca-me com muita verdade, sem vaidades tolas.
Adorei o menino banquela perguntando "quanto custa essa camêra de filmar sonho?" Claro que esse menino curioso com uma pergunta extremamente instingante e "estranha" é você. rs
Salve, Ramon!
pff...estou digitando tudo errado, já apaguei duas vezes, foi mal aí, viu!
Bem, vim submeter-me ao linchamento público ( só pq vc pediu, viu, presuntinho!)!
É o seguinte: só entendi 50% este texto depois de muita explicação e umas duas trocas de e-mails com o autor...fluxo de pensamento é foda!
Boiei !
Rapaz, você tá ousado demais! Num simples texto nos empurra milhares de questionamentos. Queiramos ou não, você nos joga a pensar no tratamento que damos ou pelo menos deveríamos dar as nossas memórias. “Tornar físico o ato de esquecer” para criar novas primeiras vezes do que já foi sentido e saboreado. È muito fantástico!
E esse seu compromisso/necessidade, em refletir e criar algo a partir do que foi lido, assitido, sentido... Admirável, invejável! Ao mesmo tempo provocador, pelo menos eu senti assim, fiquei tentando me lembrar (memórias de novo), da última vez que escrevi sobre algo que tenha assistido, lido, gostado. Tantas vezes senti essa vontade e simplesmente deixei passar em branco. De novo me impus o compromisso, dessa vez com um diferencial, tentarei tornar físico o esquecimento desse texto, para revisita-lo e reinaugurá-lo. Enfim... Me instigou, provocou e encantou esse seu texto.
Moscou demais, coutinho demais! Você é foda!
Sempre que termino de ler um livro, tenho justamente essa mesma impressão, um auto esquecimento de vem disparado pelo gatilho da proteção "memórica". eu fico num esquecimento reflexivo que justamente nada mais é que uma nova descoberta de si mesmo e do mundo. ler um livro, ver um filme, ouvir uma musica, é ler/ver/ouvir a si mesmo. muito massa o texto e a relação de falar de uma (duas, no caso) obra com uma criação sua sobre ela, ou seja: eh uma metalinguagem da propria ideia.
ah, gostei também de nunca haver letra maiuscula após os pontos, arárár.
Gosto disso que vocês faz: algo entre o conto e a crítica. Ao iniciar, como num conto, somos assim colocados diante de tudo que pode ser captado por nossa “câmera de filmar sonhos”. E como perceber essas imagens sem filmarmos os espaços dos sonhos? Sem dúvida nenhuma, os escritores são nossos grandes amigos. É como se pudéssemos conversar com Borges todos os dias – “ o que não daria eu pela memória”, diria ele. No fundo, a única coisa certa é essa vontade de comunicar, “de atravessar as barreiras que tanto buscamos na arte”. Será que assim conseguiremos um dia “controlar a intrincada teia do esquecer/lembrar”? Creio que não. Talvez só nos reste, como você mesmo disse, ficarmos piscante, como se assim tudo acabasse de surgir.
Simplesmente maravilhoso, extremamente sensível, o texto nos incita a reflexão...
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