sábado, 27 de junho de 2009

Nós, os vivos (As Intermitências da Morte)

" O que sabes tu sobre a morte (...) Não compreendes que te estou pedindo que me mates, que te estou pedindo vida?"

Nesse trecho de Os Reis de Julio Cortázar (releitura do mito de Minos), o Minotauro questiona Teseu sobre a morte e suas outras significações. Teseu parece mesmo saber pouco sobre ela, e parece representar também a maioria de nós, que sempre tratamos a morte como um monstro que deve ser temido, e até ilusoriamente extinguido, assim como um Minotauro... E é ele próprio que arremata: " só há um meio de matar os monstros: aceitá-los".
Quando Saramago nos narra a absurda greve da Morte parece buscar essa reflexão sobre o modo como recusamos aceitar sua existência, e é do mesmo modo que inicia que ele termina As Intermitências da Morte, como se no fundo o fim tivesse o mesmo sentido do princípio: um desconhecido amedrontador. Se tratando de um livro sobre a Sra. Morte tal idéia me parece ainda mais considerável, já que ao falar dela, o velho Saramago quer apontar o dedo sobre nós, os vivos. Num primeiro momento a tal greve de morte parece nos garantir alegria , alívio completo em nossa penosa existência, no entanto logo percebemos que no meio dessa ingênua tolice emerge um caos ainda pior sem Ela... Maldade, injustiça e tristeza existem independentes da dita cuja. Como sempre impiedosamente fantástico, Saramago nos envolve nesse mundo que parece impossível, mas que como sempre é cercado de um argumento absurdo para estampar suas verdades causticas. Em Seis propostas para o próximo milênio, Italo Calvino reflete como há questões que só a literatura pode representar com a devida profundidade, mesmo num mundo guiado pela imagem. Na primeira parte de Intermitências há um peso rastejante, como os corpos dos quase-mortos, e na segunda parte ele ganha uma leveza (que é a primeira proposta que Calvino defende) mesclada a um humor sutil. É uma leveza transgressora justamente por aparecer no momento em que nos aproximamos dessa Morte já tão duramente representada em nossa história. No livro ela re-surge humanizada, personificada em questionamentos, erros, e numa tristeza por tanto nos conhecer.
Ainda há dentro da literatura recente esses tipos raros que nos fazem querer guardar bem dentro cada trecho, orações inteiras com cada ponto e vírgula necessária ao arrepiamento dos cílhos do olho esquerdo. Não demora muito para que entre nossos dedos restem poucas páginas, mas ainda tão cheias de um latente fôlego narrativo. Ao final a personagem principal contraditoriamente inspira e ganha ares heróicos, pois carrega no fundo uma vontade maior, uma torcida para que a notemos, dando talvez mais sentido a cada dia, cada fim de tarde, cada pessoa e palavra que nos rodeia. Nossas reclamações e conflitos, claro, nunca cessarão sobre Ela, mas que saibamos também converter nossas dores em consciência e leveza, pois se haverá na Morte um tudo ou um nada será mesmo só nela que poderemos despertar desse não-saber, e aí... aí será.

sábado, 13 de junho de 2009

sobre inferno

Tive um temeroso sonho certa vez... No meio de uma cidade estranha e vazia todas as pessoas que gosto passavam por mim com olhares reprovadores, como se estivessem fugindo... correndo, em cavalos... Depois ouvi algo como "agora essa cidade é só sua". Nesses dias lembrei desse sonho lendo sobre umas das cidades invisíveis de Calvino... Senti a inquietante sensação, a estranha nostalgia sobre aquilo que não aconteceu... Logo pensava sobre essas pessoas, em cada uma, suas feições, seus modos de falar, reações, e principalmente seus olhares... Me vi no quarto só, mas com tanta gente circulando por dentro, mirando cuidadosos o que lia sobre elas:

"O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte dele até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço."
As cidades invisíveis - Italo Calvino

quarta-feira, 3 de junho de 2009

GARAPA

Quando soube ano passado do novo projeto de José Padilha pensei que haveria ali chance mais concreta de avaliar sua obra. É audaciosamente corajosa sua tentativa de tratar sobre a fome num documentário, depois de tanto já ter sido acusado em seus conhecidos e polêmicos projetos anteriores. Padilha parece perseguir as dores que nos cercam, e que tanto já banalizamos. Se em Ônibus 174 (um dos grandes momentos do documentário brasileiro recente) e Tropa de Elite ele buscou questionar a violência urbana através do olhar dos seus protagonistas, em Garapa a fragmentação de tal olhar é essencial para entendermos a gravidade do problema, representado nas misérias angustiantes de três famílias cearenses. Os momentos catárticos e os finais trágicos dos outros filmes, permanecem aqui constantes logo nas primeiras cenas, e que não tardam a silenciar os sacos de pipoca que os espectadores automaticamente carregam pras salas de cinema, mesmo cientes do assunto em questão. Em meio ao preto e branco granulado, que parece querer aliviar a dureza das imagens, questionamos nossas prioridades, os tantos absurdos que nos cercam, e tal exercício de (re)humanização não irá se restringir apenas ao tempo da projeção. A água misturada com açúcar que intitula o filme, e que alimenta aquelas crianças parece também descer por nossas gargantas, e é um amargo paralisante que logo se converge em espasmos de revolta. 
Os já esperados debates sobre as inclinações políticas lulistas (ou não) do filme perdem força para um outro muito mais válido: Como pessoas minguam até a morte de desnutrição enquanto políticos passam anos se acusando em seu inferninho central acolchoado?! 
Toda obra cinematográfica já é em si um objeto político, e quando ainda esta se responsabiliza claramente em reapontar tais centenárias feridas, percebemos que nada mais essencial para validarmos a relevância da obra de um cineasta. O olhar seco e direto de Padilha incomodará muitos mais uma vez, e que dessa farta discussão surjam soluções menos vazias, disso já basta a barriga destes tantos.