domingo, 18 de julho de 2010

Instruções para caminhar por Havana sem se machucar

Esqueça a direção que pretende seguir. O destino sempre chega aos que firmam os pés, os levantando a doze centímetros e meio do chão, evitando assim, pequenos e incómodos acidentes, como os de pedras mais altas do passeio beijando dedos desprotegidos, principalmente nos dias chuvosos de quinta-feira. Levante os pés pausadamente, em ordem, um seguindo o outro como em uma marcha para Plaza de la Revolución no dia 26 de julho. Evite mergulhar no olhar das outras caminhantes, evite pensar que elas também pensam no seu olhar descuidado. Alterne sua mirada entre os paralelepípedos, muros e na direção do sol. Concentrando-se em certos temores distantes como o de um povoado na Escócia que vende livros com uma página em branco perdida em algum lugar do volume. Se o leitor desemboca nesta página às três da tarde, morre.* Evite beber água em garrafas plásticas de 1,5 Litros enquanto caminha, evite ler contra-capas de livros de autores que parecem com os cachorros que esperam algo na escada do seu edifício. Evite discutir alternativas de envelhecimento com um homem de 80 anos que carrega no ombro uma câmara de ar de bicicleta vazia. Não invista olhares prologados sobre as casas de portas abertas que sempre apresentam algo novo. Use sapatos escuros sem rasgos, furos ou infiltrações. E por favor, não imagine devaneios como o de um pescador buscando seu peixe entre as nuvens. Com essas instruções a probabilidade de machucar o mesmo dedão do pé esquerdo em menos três dias cai pelo menos 78%, logo perderá a chance de ter uma pequena, mas significativa cicatriz, de uma cidade que se acostumou deixar rastros naqueles que se atrevem a acreditar que estão a conhecendo. Ela, esta cidade, já te conhece bem mais.

*Trecho de Historias de cronopios y de famas, de Julio Cortázar

sábado, 10 de julho de 2010

Devaneios entre cinema, futebol e novela

A grua sobe lentamente acompanhando o passo do personagem. O movimento ganha um efeito épico também pela sombra multiplicada por quatro no chão. Atrás, alguns outros acompanham toda a caminhada com aflição. Vendo os penâltis de uma partida qualquer da copa observava como as transmissões dos jogos estão cada vez mais cinematográficas. Se naturalmente o futebol sempre teve sua própria estrutura narrativa com início, meio, surpresas, vilões, heróis e finais, agora as câmeras parecem saber captar melhor essa dinâmica de contar histórias. Os mais diferentes ângulos, as câmeras lentas captando pequenos detalhes de drama, de comédia, as reações dos coadjuvantes, da torcida se reconhecendo nos telões, dos jogadores enfeitados como atores... Tudo parece girar não apenas em torno da bola, mas também sob a idéia de uma construção de imagem, de uma complexa e enorme mise en scène. Provavelmente esse efeito tenha sido ampliado por estar acompanhando alguns dos jogos dentro de uma sala de cinema com 1.200 lugares. Aqui em Havana também tiveram a ótima idéia de transmitir os jogos nos cinemas a partir das oitavas de final. Como cinéfilo tentava entender essa exótica relação futebol/cinema, e como torcedor observava a torcida dos outros. No jogo do Brasil contra o Chile, por exemplo, havia uma massa verde amarela barulhenta composta principalmente por cubanos com algum tipo de simpatia pelo Brasil... Provavelmente um efeito dos sucesso que as novelas brasileiras fazem por aqui. Outro dia quase que vi um bloco inteiro de "A favorita" só pela graça de ver a dublagem ainda mais melodramatica de Flora. E eu que nunca sei o que dizer quando me perguntam sobre o bendito final. ", en Brasil hay también estes tipos raros que no ven novela, e peor, no entienden de fútbol." Mais raro ainda que assistir em Cuba essas minhas duas piores especialidades, é entender o quanto elas são absorvidas no cotidiano do país, elementos esses tão distantes da sua tradição cultural revolucionária. No final do último jogo brasileiro, entre os cubanos, reconhecia a presença de alguns compatriotas captando da multidão enfáticos "caralho!" entre outros termos técnicos depreciativos, enquanto era cada vez mais certa a eliminação da seleção canarinho. Realmente depois de acompanhar as dramáticas eliminações de Gana e de todas as equipes que eu tinha alguma torcida compreendo um pouco mais os cubanos que torceram pro Brasil, pra Espanha, que assistem novela, e que questionam minha identidade brasileira. Certamente ambos os lados, por diferentes meios, estão buscando ampliar essa tal identidade, como uma maneira talvez de respirar e entender o resto do mundo, que pra eles se faz tão presente através do turismo. Se eles não podem viajar com tanta facilidade como os outros, vão fazê-lo vendo novelas, filmes, usando Nike, e tudo aquilo que aparentemente os mantenha conectados. Essa maneira de troca me parece um pouco perversa, afinal todo um diálogo acaba enquadrado em um modelo de porta entre-aberta.

Mas espera, estava tentando falar de outra coisa... Acabou e o Uruguai acaba de perder... Merda! Vou no cinema, agora ver um filme.

domingo, 4 de julho de 2010

Da baía à ilha – o alívio triunfante de se perder

Havia três dias que eu estava tomando banho com xampu. Andei pelo menos meia hora atrás de um sabonete. Não encontrei. O melhor foi que justamente enquanto me perguntava onde realmente estava, uma mulher me parou na rua buscando informação. Devia estar andando com uma cara bastante confiante pra ela achar que eu sabia onde era a calle h con 17. Assim, mesmo quase perdido, me senti um pouco mais parte dessas ruas. Essas leviandades cotidianas me deixaram mais confortável por Havana, pelo menos nessas quadras ao meu redor. Provavelmente não há melhor modo de iniciar uma relação com uma cidade que se perdendo por ela... Depois claro, sentir o alívio triunfante de se encontrar sem ter que recorrer a um taxi. Fase vencida!
Logo aqui na frente tem uma praça com meninos que entusiasmados pela copa, correm atrás de uma bola do jeito mais improvisado possível. A mãe grita, espera, sorri. Do outro lado está um dos meus pontos de pesquisa, a Associação de escritores e artistas de Cuba. Quase que por sorte aluguei um quarto próximo das coisas que mais quero freqüentar. Há pelo menos dois cinemas próximos, e o Icaic também não está longe. Vedado é um bairro aparentemente residencial, mas que guarda todo tipo de surpresa em suas esquinas. Pequenos negócios familiares, como restaurantes ou quartos alugados para turistas e estudantes é parte do jeitinho cubano de aumentar o orçamento, com ou sem autorização do estado. As prostitutas se insinuam discretamente, outros oferecem charutos e eu ainda não desenvolvi um modo de recusar sem conversar tanto.
O quarto é confortável, grande e com móveis antigos. Sinto-me no quarto da minha Avó, e por isso acolhido. A cama tem espaço suficiente pra dormir nas posições em que os sonhos mais malucos exigem. Há uma poltrona, um pequeno abajur, ventilador e geladeira... Só me falta mesmo uma janela pra me manter em conexão direta com a rua. Ruas tão pulsantes, disformes, de passeios irregulares, dos clássicos carros dos anos 50, das pessoas falando alto em suas varandas.
Vou absorvendo uma pilha de palavras por dia, tanto que minha relação com o português agora praticamente se dá por esses escritos e por alguns livros que trouxe na mala. Outro dia li de uma só vez uma biografia que Aléxis Góis, um amigo do cineclube, escreveu sobre o cineasta Roberto Pires. Voltei à Salvador por algumas horas de uma maneira muito intensa, às vezes me dando conta onde estava, dando uma breve volta com olhar pelo quarto. Desse choque vi quantas pequenas conexões internas estava aos poucos construindo entre os dois lugares. Há muito que ver, que sentir...
Ontem encontrei sabonete enquanto buscava uma feira pra comprar frutas. Comprei dois, água e pasta de dente. Descobri que estou residindo justamente na rua em que a mulher de óculos vermelhos havia me perguntado naquele dia - calle h con 17.
Há muito que se perder...