terça-feira, 29 de novembro de 2011

Não há vagas nos estacionamentos


Não há vagas nos estacionamentos
Tão pouco há vagas nas ruas.
Não há vaga em canto algum,
Nem para os carros
Nem para o olhar da moça ao outro lado.

Vagam os gestos pelos olhos de outros,
E não existe vaga que já não fosse de outro.
Definitivamente, não existe preço melhor a pagar
Do que o preço da falta de vagas a pagar.

Não há vagas, nem mesmo nas lojas
Onde se diz em palavras garrafais: há vagas para clientes
Sem vagas.
Não existem as vagas,
Vaga-lumes-divagares na acepção mais vaga da palavra.

Há vagas sim. E há vagas não.
Pelas vagas dos que vagam perdidamente pelas várzeas,
Largas vagas que nos restam nas esquinas Vargas.
E se existem mais Vagas do que anúncios,
Sempre mais vagas hão de existir que Getúlio.

Eu sei que há vagas e ponto final.
E mesmo que ninguém diga que saiba,
Eu sei das vagas, das caras, ruas e praças.
Eu sei da vaga madrugada

Pelas ruas vazias,
Onde qualquer vagabundo,
É mais vaga-lume do que quem diz.
E vagueando pela praça,
Apertando o vaso constrito desse cópia-poema,
Olheio o vago sujeito composto,
O primeiro desse justo-esboço.

E há uma vaga-novembro nesse exato momento,
Desavisada e oca, vaza-poema.
Desencaixada, vaga e rouca,
Poucas palavras,
Largo-pobre-vago-poema.

(Francisco Gabriel Rego)

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Ela divagou naquela tarde amarela sobre um destino encardido e torto que lhe empurrava  sempre pro lado mais errado. Silêncio. E Dindón lhe disse:- Menina besta, é nas entranhas que a loucura é diluída ... pare confundir e esquecer suas escolhas erradas...
Sim, ela respondeu, mas só, à noite, pra o seu travesseiro rosado: 
- Se é errada é porque tenho que esconder que é escolha. Uma coisa ou outra...
Inventou a certeza que só podia alimentar umas delas: a angústia ou a possibilidade de continuar vivendo. Nessa noite sonhou que era criada por uma hiena triste.

pág. 239 "O laço que prendeu meu cabelos enforcou meus filhos", Álvina Tropero.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Frases de um membro frouxo num percurso de deus


A cidade estava de novo moldada pelo aço febril do sol: a curva das coisas, o modo que as pessoas andavam se esbarrando nos barulhos, nas disputas, na simples tentativa de atravessar de lado nas calçadas abarrotadas. Competiam entre si e o calor, expandindo os corpos com aquela velha e ordinária tentativa de existir de um modo menos desconfortável. Depois de ler três vezes a mesma frase acabei compreendendo melhor o absurdo das palavras, daquelas observações banais. “Apimente a sua relação”. Um letreiro publicitário em vermelho alardeava um curso de pompoarismo revolucionário. Ri de canto. O homem perto do sinal estava concentrado, com a cabeça curvada em direção ao meio das pernas, sujando de mijo um muro com um grafite colorido com outra oração déjà vu : “Penso, logo stencil”. Fiquei imaginando aquelas mulheres em uma sala com ar condicionado barulhento, se observando, pensando na elasticidade vaginal da colega da esquerda. Antes de sair o homem ainda cuspiu no chão, trocando de membro, atendeu o celular. Como deformar uma coisa deformada? A arte se contorce, dolorosa. Será que o comando mental sobre o músculo pubococcígeo, nos músculos circunvaginais e nos grandes lábios da vulva ajudam mesmo? Concentrei, saí da cena, lembrei: Foi toda esticada que a mão dela resolveu pousar sobre minhas costas úmidas... meio flor, meio radar… era querer saber demais de minhas excitações sudoríparas, mas rimos, cúmplices, sem saber muito porquê. Minha intimidade convertida em suor, explícito, confundindo a beleza de sentir poros dormentes com a buzina atroz que me jogava de novo naquela luz exagerada, que expulsava e tragava pro mesmo lugar, mesmo percurso. De qualquer sorte absorvi – nutrido – melhor o redor, mas querendo chuva, chuva sem derrubar a casa de ninguém, sem dar medo pra ninguém, mas desejando mais a forma molhada, fluída e refletida das coisas. Eu era ali um grande lábio desestimulado, cansado da mesma posição na hora do sexo besta, cotidiano. A cidade era aquele mijo secando no sol. Resgatar o escuro, tateando a memória e deformando o que deus criou era o único modo de vencer de novo aquele percurso dormente. 


Ps: Em homenagem ao ônibus Barra 3

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Li na página vinte

E embora não houvesse crianças brincando, nem pombas, nem telhados azuis, senti que o povoado vivia. E que se eu escutava somente o silêncio era porque ainda não estava acostumado ao silêncio; talvez porque minha cabeça viesse cheia de ruídos e de vozes. De vozes, sim. E aqui, onde o ar era escasso, ouvia-se melhor essas vozes. Ficavam dentro da gente, pesadas. Recordei o que minha mãe me dissera: "Lá, você me ouvirá melhor. Estarei mais perto de você. Você irá sentir mais perto a minha voz de minhas lembranças do que a da minha morte, se é que algum dia a morte teve voz". Minha mãe... a viva.


Pedro Páramo, Juan Rulfo

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

quando a vida não é assim mesmo


O homem que abria a porta do banheiro em direção ao vaso sanitário não pensava sobre seu passado desenhado em formato de seta - habitual, corriqueiro - muito menos refletia sobre o sanduíche de salame que o fazia estar ali, com tamanho mal estar. Encostando lentamente suas pernas cobertas de pêlos sobre a auréola de plástico do vaso, buscava apenas aquela paz evacuadora, enquanto folheava uma revista quatro rodas que roubara dias antes na sala de espera do dentista. Mesmo concentrado nos mais variados acessórios dos carros mais novos, adentrou forçosamente passivo na conversa do vizinho ao telefone: "Quem? Quem morreu?", e depois da longa pausa: "é isso, a vida é assim mesmo. A família tá bem de dinheiro?". As frases passaram desapegadas num primeiro momento, como normalmente sucede em tais circunstâncias, mas logo, de um modo virulento e estranho, aquelas pequenas orações foram se alargando no pensamento, e o homem gradualmente foi ficando mais estático sobre seu pequeno trono de paz. Não mais que dois minutos depois, já tentava desembolar as palavras que chegavam aleatórias pelo basculante, sendo agora, como de costume são, apenas sons distantes do vizinho ao lado. As palavras pregam peças, as vezes não as queremos, mas elas nos invadem, e quando às buscamos, famintos, tornam-se sussurros banais. Dessa curiosidade peculiar a orelha do homem arrepiou subitamente. Ele queria ouvir um nome, este que serviria de pretexto pra pensar sobre a pessoa... Pessoa que o fez arquear as sobrancelhas, depois de tempos sem fazer uso delas de modo realmente expressivo. Agora de pé, nu da metade do corpo pra baixo, tendo a tal revista ainda atada a mão direita, passou a outra mão (livre) sobre a testa levemente suada. Nos minutos seguintes se dedicou a ouvir o que fosse, somente. Uma torneira assobiando água de um lado, uns berros infantis do outro, e todos os veículos - com ou sem acessórios, novos ou velhos - da rua. Nem uma careta arriscou fazer quando o rosto derramou uma lágrima, daquelas que parecem mais suicidas de tão rápidas que caem. Do olho ao chão e pim, espalhou. Ninguém sabia se não eu, e por isso mesmo conto, que era justamente no fim semana passado que este nosso personagem - completamente vestido - gritava junto a outros para o futebol do televisor, enquanto a pessoa sem nome, que serviu de assunto pra conversa que ele ouviu, engasgava em seus últimos suspiros. E absurdo é que do quinto andar do hospital, este colado ao prédio de onde os gritos da torcida rasgavam o ar e chegando sem importância a outro homem, outro que até agora não havia nada de escrito, apesar de bastante pensado. Encostado com a testa nos braços em uma pequena mureta da varanda exterior do centro hospitalar, derrubando lágrimas pela pessoa, que sim sabia muito bem o nome de cor desde pequeno. Líquido lacrimal bem diferente daquele descrito há pouco, tanto pela razão clara e imediata que o provocara, quanto pelo fato de ser recebido com fortes contrações faciais, riscando tortuosamente as bochechas enquanto uma frase saia repetidamente junto ao suspiro...


 "Não, a vida não é assim". 

terça-feira, 16 de agosto de 2011

A Melancolia do fim em prol do equilíbrio

É de expansão que Lars Von Trier vive. A chegada de Melancolia é a prova da constante dilatação do seu cinema. Depois de uma crítica frontal a América - Dançando no Escuro, Dogville, Manderlay - as aflições e imagens de Lars parecem querer dar conta da nossa complexa humanidade como um todo, crecendo para além da pequenez terrena. Se Anticristo buscou de modo tão cru interrogar a natureza fazendo uma releitura de nossa gênese e história, agora é do princípio do fim que o diretor questiona nossa existência.

Melancolia é norteado (como é hábito na cinematografia do diretor) através dos poderes femininos e sua intensa ligação com a natureza, com o cosmos. Nesse sentido o filme é quase uma continuação de Anticristo, do mesmo modo que a fotografia e o tom das cores dão uma densidade visual em cada sequencia. A clara diferença entre os filmes está no ritmo, afinal há tempo e calma pra se pensar Melancolia, permitindo um deslumbramento mesmo diante da agustia crescente – como na cena em que os personagens observam a proximidade do planeta. O tempo de Anticristo se desenrola sobre o efeito do choque, da confrontação com a dor excessiva. Agora, depois que o elo entre homem e mulher foi cortado no filme anterior, a personagem principal parece livre para sentir o mundo ao seu modo, sem um vínculo preso as condições terrestres, como a Mulher atada de Anticristo. Ela renasce aqui não pra promover um acerto de contas, mas pra um doloroso amadurecimento. As primeiras cenas já nos entregam com a precisão de uma câmera super lenta todo o início-meio-fim do filme, para daí sim seguir um trajeto trépido com uma câmera na mão, incerta em meio a tantos significados.

Lars nos brinda com uma metáfora da extinção interna, sentimental, engolidos de vez pela gigantesca depressão e melancolia que sempre nos cercou. O sentido duplo do título do filme parece indicar que nesse tal apocalipse há uma clara responsabilidade terrestre, culpa da estupidez por basear nossa existência no exercício do domínio e poder, e não no equilíbrio entre todas as forças. As histórias do diretor sempre perseguiram essa anomalia humana de vencer sobre o outro: a escravidão em Manderlay, o imperialismo disfarçado de boa vizinhança em Dogville, a injusta justiça de Dançando no escuro, a religião e o machismo em Ondas do destino. Aliás é com esse último que Melancolia parece construir também um evidente diálogo. Além do casamento que iniciam ambos os filmes, as personagens principais possuem capacidades sobrenaturais que determinam suas práticas. Se Bess clama e realiza suas vontades nas confissões com Deus – mesmo no mais alto teor de sacrifício – Justine possui uma clarividência que lhe integra plenamente ao universo.

A nudez da personagem na floresta é a constatação da sua sabedoria e descoberta, sem antes, claro, passar por um confuso percurso de desconstrução. É disso que a primeira parte de Melancolia se debruça. Lars faz uso do clássico ritual matrimonial para exibir o palco perfeito das invenções de um futuro próspero, que maqueia a verdade em um jogo de poder e aparência. Daí as peças, espaços e personagens do diretor vão encontrando seus lugares para deixarem suas máscaras, revelando suas reais simbologias. O cunhado de Justine é o homem arrogante iludido pela crença na opulência e no conhecimento científico. Inseguro ao ponto de tentar expulsar a figura que mais ameaça seu poder: a mãe de Justine, ácida e pessimista, já farta de todo aquele "teatro" que não durará para sempre.

A alegria do casamento se confunde todo tempo com a estranha sensação do temor e insegurança da noiva. Quando essa aflição lhe leva a ficar sozinha no quarto ela subitamente reorganiza os livros na estante com pinturas de morte, invasão, fim... As figuras são como cartas postas na mesa que agora lhe enche da dolorosa responsabilidade de saber. Ela busca um diálogo com o noivo, com a mãe, com o pai, mas sem sucesso se entrega a rédia da impulsividade. A partir dessa armagedônica certeza ela irá ironicamente se salvar das hipocrisias das convenções sociais - um casamento vazio, um emprego que lhe rouba a vida. O pai-deus com sua adorável simpatia não perde a chance de se ausentar (como de costume) quando acha a primeira carona, fugindo de conceder amparo e conforto, mesmo depois que Justine lhe implore presença. Uma paralítica depressão lhe invade a partir da segunda parte do filme, e só após o diálogo com a irmã, na mesa de jantar, sua postura muda radicalmente com o que está por vir: "A vida só existe na terra, e não por muito tempo". A irmã Claire tem algo a perder por isso teme, pondera, sofre, tenta manter uma esperança desesperada, como provavelmente muitos de nós faria.
A influência de Bergman (Persona) e principalmente de Tarkovski ficam ainda mais perceptíveis, tendo como referência óbvia "Solaris"(1972), do mesmo modo que outro filme remete aos temas fundamentais de "O Sacrifício" (1986), último filme do diretor russo. Esse diálogo com outras obras extrapola o cinema e resgata ainda pinturas pré-rafaelitas na construção de uma fotografia exuberante.
John Everett Millais - Ophelia
Como no esquete inicial nos indica, a trindade formada pelo menino alinhado a lua, Justine com o planeta Melancolia e Claire como representante da Terra - não à toa é a mesma atriz (Charlotte Gainsbourg) que conduz a união mãe-natureza em Anticristo - serão os que resistirão a colisão do planeta protegidos pela capacidade de encarar a situação. Do mesmo modo que as irmãs, uma nova união cósmica entre terra e universo precisa se consumar, não por uma lógica meramente casual ou física, mas pela atração dos corpos que necessitam acima de tudo manter um imenso equilíbrio e harmonia, deixado ínfima nossa mesquinhez e maldade.

domingo, 17 de julho de 2011

quadrado de sol - um filme

Filho, acabo de ter certeza que estou grávida de você. Estou engolindo isso há algumas horas, deitada, sem confiar muito na firmeza das pernas. É como se meu corpo antecipasse as dores, o peso e os incômodos que é certo sentir até ver algum detalhe seu. Queria poder imaginar isso claramente agora... um olhar, o pequeno sorriso, o formato do rosto que fosse, mas só vejo meu corpo crescendo, maior, minhas dúvidas seguindo inchaço constante de mim.

Passei a manhã observado o tamanho exagerado das minhas unhas... Lembro da minha tia que dizia que eu era a única que não sabia guardar os brinquedos, que não sabia me cuidar direito. Ainda não sei e você entender isso. Um pedaço de sol recortado pela janela forma um quadrado pequeno na cama... É estranho o modo como quis me tornar aquele quadrado iluminando no lençol. Apenas ser uma coisa... Com forma, cor e trajeto definidos.

Queria deixar existir... Sem conceber.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

CUAL – Manifesto da Urgência

Dizem que há uma média de tempo que parece determinar a produção de um longa-metragem feito na Bahia. A grosso modo são quatro longos anos que separam as gravações até a conclusão da pós-produção. A distribuição é outra história de espera. E quando finalmente estão lá na sala, projetados, quem os vê? Como filmes pagos com dinheiro público não retornam para as pessoas que o pagaram? Como a política que de editais pode dar conta do tripé produção-distribuição-exibição num mercado dominado por um modelo hegemônico e inibidor de nossa própria cinematografia? Questionamentos que se repetem constantemente como bordões tragicômicos. Aceitar essa condição agônica é negligenciar não a arte cinematográfica e seus pilares estéticos, mas o modo como as coisas são reproduzidas e descartáveis a todo tempo, em todo lugar. Precisamos de filmes que nos tirem desse conformismo velho e gasto que nos invade todos os dias quando acordamos. Nos mostraram como Rambo matava russos na sessão da tarde, enquanto nossos personagens se mantinham e continuam invisíveis, bem ao nosso lado, nas calçadas, filas, elevadores, entre as latas de lixo. A TV foi nossa babá e certamente não estamos contentes com essa criação.

Precisamos de mais filmes e menos lamentações. Essa parece ser a única certeza na qual podemos nos apegar claramente. Mas como produzir novos meios diante de situação tão complicada, mesmo pra aqueles já estão tentando realizar cinema há tanto tempo? Como os novos realizadores podem agora se inserir nessa intrincada seara? Nossa responsabilidade parece muito mais séria do que nos damos conta. Em tempos em que as câmeras digitais parecem contribuir para um maior fluxo e diversidade de produções em toda parte, convivemos com uma mordaz contradição, espera e ausência de novas imagens e abordagens. O acesso as novas tecnologias empolgam ao mesmo tempo que nos confundem. Buscamos assimilar toda uma amplitude de vivências e outras experiências para convertê-las em propósitos e ações organizadas, coletivas, que ocupem espaços e nos ampliem para além das nossas salas confortáveis.

Acreditamos que produções independentes realizadas cooperativamente são alternativas eficientes no momento que dilatarmos nossa ideia do que é cinema, para quem e porquê devemos fazê-lo. Hoje formatos, tamanhos e temas não mais parecem encontrar um limite como antes, e a máxima de Glauber de uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, ganha ainda mais sentido do que na época que foi proferida. Nossas maiores influencias – mais do que os filmes em si– devem ser outros exemplos de atitude e ocupação, resistência e subversão que emergem a todo momento e lugar.

É urgente termos mais filmes na Bahia agora porque houveram filmes na Itália do pós-guerra, na pós-revolução cubana, porque há “Harry Porter” nos cinemas todos os anos, porque há filmes sendo vistos e feitos na Ceilândia e outras periferias.

Estamos aqui pra assumirmos nossa condição, mas mais que isso, nossa vontade.

Acreditamos que a vivência acadêmica, o aprendizado teórico deve ser uma pequena parte de um processo maior, que com esforço pode realmente nos aproximar, acolher, transformar. Extrapolar os limites de um rótulo geográfico e redutor de “Cinema baiano” - como uma mera área de atuação - pra assumirmos o fazer de um cinema de agora, urgente e necessário, atento as demandas e lutas que farão das nossas imagens pontos de convergência e transgressão.

“Por meio do cinema, é necessário situar os problemas mais complexos do mundo moderno no nível dos grandes problemas que, ao longo dos séculos, foram objetos da literatura, da música e da pintura. É preciso buscar, buscar sempre de novo, o caminho, o veio ao longo do qual deve mover-se a arte do cinema."

Se Tarkovsky, de tão longe, há tantas décadas atrás, proferiu essa frase, é porque o cinema de todo e qualquer lugar precisa do mesmo e transcendente impulso.



Coletivo Urgente de Audiovisual

Julho de 2011

terça-feira, 5 de julho de 2011

terça-feira, 21 de junho de 2011

domingo, 12 de junho de 2011

um ano que eu pisava em ti

Foi naquele dia dos namorados que eu pisei pela primeira vez em você... um dia que poderia ser como um qualquer desses bestas por aí, mas meus passos confusos e empolgados estavam ali sobre ti, do jeito que você pareceu gostar. Sei que te usei, fotografei, rodopiei, apaixonei, mas quando te larguei uns meses depois foi com todo dó e nó no peito, nos pés.

Ó Cuba das minhas madrugadas febris, deixe eu pisar de novo em você!

domingo, 5 de junho de 2011

Tomás - A última ceia

Poner en orden mi vida.
Todo lo que escriba ahora tendrá ese único fin. Ver quién soy y llegar a saber hasta que punto soy consequentemente con lo que yo creo que soy. Hasta que punto es coherente este transitar por la vida. Hasta que punto tirne un sentido. En qué medida, si no vigilio mis pasos, puede dividirse todo en una gran equivocación, en algo torcido y estúpido.
El hilo conductor va a ser mi trabajo porque es aquí donde se sintetiza en algo concreto lo que me mueve.
Tomás Gutiérrez Alea



terça-feira, 31 de maio de 2011

Momentos pagãos e sagrados com Paul

Era um homem de estatura mediana a mais ou menos 60 metros que eu tentava enxergar entre mãos, cartazes, gritos, palmas e luzes ofuscantes. Diminuído pela distância, mas duplicado algumas vezes pelo telão, pela canção bendita - "all your life you were only waiting for this moment to arise"- deixando a moça desconhecida mais próxima de mim com os olhos úmidos, em tons avermelhados e recheados de uma emoção que se manteve contida por várias horas de espera... A fila era pra ver aquele senhor com mais de setenta anos entornando melodias e tons, conduzindo sensações desde os nossos antigos e mínimos momentos. Imaginei a menina que foi embalada no berço com o pai balbuciando "the long and winding road”, ou aqueles primos que brincaram na rede ao som de "o-bla-di o-bla-da". Cada um expandia suas memórias compartilhando o quando, como e onde tiveram suas histórias emolduradas por aquelas músicas. Bastava encostar na fila pra escutar as justificativas, os esforços, a vontade cheia de ansiedade em estar ali.

Tantas expectativas positivas não impediram uma dose estranha de tensão, proporcionada pelas armas e caras policialescas em torno, protegendo o direito, a compra correta dos ingressos. Era entre fãs e homens da lei que tentávamos burlar o esquema, numa mutreta conturbada com um cambista de terno e gravata, com uma refinada e inesquecível listra dourada no meio dos sapatos pretos. Parecia justamente o tipo de cena que muitos julgariam inverossímil se vissem fora da vida real. O cambista (que taxativamente negava tal nomeação) enrolava, ia e voltava prometendo toda a garantia e direitos ao consumidor como se fosse o gerente das casas bahia, concatenando ideias no mais puro sotaque de malandro carioca. Era Paul, não podia sair barato, diziam, enquanto o lucro ia sendo injustamente repartido. Alguns vigiados pela polícia enquanto outros, como sempre, protegidos e guiados por ela. Foi assim que repentinamente, enquanto criticava o modelo de consumo e apropriação do discurso de massa pelos beatlemaníacos, notei um burburinho crescente: cachorros rosnando, rádios emitindo chiados, um coro de fãs ensaiando sua performance gritante, e "… Paul chegou!", ouvi inquieto. Me vi como ímã encostando na barra de ferro a minha frente, vendo o aproximar veloz de uma maosinha simpática pra fora do carro. Pude sentir um tremor contraditório subindo pela garganta que pareceu um berro... Pronto, a partir daí já estava aquecido pra o que viria: uma tempestade de clássicos que trilhavam entre a fase Wings, solo e aquela que muitos parecem preferir, a conhecida fase dos besouros. Meu corpo foi rodopiando e balançando na medida em que o setlist ia sendo executado. Tamanha turbulência me causou uma ligeira amnésia que impedia de lembrar quantos clássicos estavam por vir ainda. Fenômeno esse que curiosamente só reforçava a força das músicas em seus primeiros acordes. Depois de “Yesterday” e “Eleanor rigby” já se podia esperar todo tipo de comentário da platéia. Uma velhinha baixinha passou gritando “lindo, gostoso” e outra de 14 anos dizendo “ele é tudo pra mim”. Era mesmo um show-culto que respeitava evidentemente os momentos pagãos e os mais sagrados. Em "helter skelter" eu pisava e dançava sobre as cinzas dos deuses maias, assumindo o transe da loira do banheiro até ser tocado por uma mão estranha segurando meu ombro. 1, 2, 3, 4 segundos de tensão. O estranho só tentava passar sem ser atingido por um braço em descontrole. Já em "Hey Jude" liberava todas as energias e tragava outras num mantra de quase dez minutos de "naaaaa-na-na-na-na". Engraçado como a gente só se une pra cantar uma música pop, pra torcer pelo time ou pra beatificação de uma nova santa. Só. Estádios sempre são palcos das unanimidades. Pior era como boa parte dos presentes vivenciaram tudo aquilo através das lentes das câmeras e celulares que impiedosamente gravavam o show, numa epifania que parecia eleger a simulação como meio de sentir. Eu ainda tentei registrar alguma coisa, mas fui impedido oportunamente graças a explosão de "Live and let die". Viva a rouquidão e as dores de pescoço...

Como se não bastasse o bom-senhor-com-cara-de-moço-simpático, depois de soltar várias vezes algumas frases em um português truncado, ainda recebeu no palco quatro fãs em prantos, pedindo autógrafos, abraçando repetidamente e saindo como se abençoadas pela entidade... É, na ausência dos deuses muitos elegem mortais bacanas para seus altares.

O cara ali no meio de tudo podia ser mesmo um mito, um herói pra muitos, um cover dele mesmo, e depois de duas horas e meia de show e alguns dias depois da experiência, continuo sentido uma rara e contagiante constatação de perceber como muitos querem mesmo é simplesmente encontrar brechas pra achar as mesmas coisas... deixando ser e viver sempre perto das antigas e boas canções.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Liturgia das horas

Ontem sonhei.
E como no dia em que te vi
Ainda era noite.

Ontem sonhei,
E tinha tudo,
Imagem esquecida,
Na noite
Em que te vi.

Ontem,
A dizer de ti,
Tinha, pelo rosto,
A sua imagem
Antes de partir.

A se dizer de mim,
O cheiro de luto
Vestida pela
Noite carmim,

Ontem,
Conquanto fosse você,
Seria estranho reconhecer-lhe
O dorso.

Apenas o rosto.

Ontem,
Como antes,
Se não houvesse ontem,
Antes mesmo que,

Anteriormente,
Não fosse noite,

Antes mesmo
Que,
Antigamente,
Fossemos nós,
Envelhecidos.

por - francisco gabriel

domingo, 8 de maio de 2011

Tarefas de casa

Matéria - Fotografia cinematográfica
Tarefa - Escolher uma fotografia de um filme e comentar

"Stalker" (1979) de Andrei Tarkovsky – Difícil tratar de um filme como Stalker analisando apenas um fotograma, no entanto, esse em questão parece resumir a proposta que o filme e o cineasta tentou discutir em boa parte de sua filmografia. A busca do homem em solucionar suas angustias não só internamente, mas também através do espaço, de chegar a um lugar-essência, diante dos mistérios que nos desencaixam de um ambiente hostil e ameaçador. O uso aparente da luz natural cobre toda a fotografia dando a profundidade de campo uma amplitude que reforça a ideia da pequenez do sujeito, sua incapacidade de seguir, mover-se em prol do encontro, como se quisesse reverter o sentido da existência e voltar a posição fetal, de útero, segura. Perdido e ilhado em si, cercado pelos muros rachados, e por uma água tão turva que é incapaz de refletir mesmo as sombras, o único que parece entender a situação e o meio é o cão que rodeia, talvez como vigia, talvez como algoz.

Matéria - Oficina de Realização
Tarefa - Realizar vídeo de 1 minuto tendo como tema central o cinema
Título - "Que horas é a sessão?"
Equipe - Tainá, Danilo, Luan, Francisco, Marcus


Matéria
- Cinema Baiano
Tarefa - Realizar comentário crítico sobre um dos filmes vistos em sala
Título - Resistência, dedicação e paciência em“Talento demais”

Mesmo diante de uma crise iminente e agônica o cinema baiano parece nunca perder a capacidade de questionar modelos, provocar a si próprio e sua história. Nessa perspectiva metalinguística Edgar Navarro constrói “Talento demais”, debochando e homenageando aqueles que se aventuraram nessa contagiante contradição histórica que é fazer cinema na Bahia.

Mesclando passado e presente, resgatando personagens e os confrontando numa mesma sequencia, Navarro expõe, através de nossos ícones cinematográficos, a incapacidade de nos libertarmos de uma constante crucificação política/ cultural que nos impede de produzir outros sentidos, histórias, espaços e ideias para nossas câmeras na mão. Estamos atados ainda a esses personagens, não apenas por celebração, mas como condição, não à toa Navarro costura sua narrativa através de um remake da emblemática cena Meteorango Kid, filme que já escrachava as mesmas questões mais de vinte anos antes. Todo esse alardeamento homenageador de “Talento demais” se edifica não apenas por seu tema, mas principalmente pela pela forma que imprime suas imagens. O vídeo falando de cinema parece insuficiente esteticamente ao mesmo tempo que reforça sua denúncia, sua febre, tendo o improviso no lugar da engenhosidade e criatividade, como foi com os cineastas que precederam Navarro e seus companheiros. A textura jornalística de “Talento demais” é ainda mais acentuada pela voz garbosa que nos guia em off pelas várias fases da nossa cinematografia. Talvez sejam essas contradições estéticas que Navarro queria nos expor junto dos depoimentos, das imagens de arquivo, da personificação desse cinema em cada um que surge na tela como diretor, realizador, ator ou personagem. Ali, mesmo meio inconfortáveis diante da fita magnética, unem suas angústias e provocações com uma dose aliviante de ternura e humor.

A lentidão e o talento (do qual o título une os sentido) desses processos cinematográficos no Brasil, na Bahia, demonstram que não bastam ideias para o fazer cinema, mas também resistência, dedicação e paciência. Ao fim de “Talento demais” tendemos a seguir por dois caminhos, ambos dolorosos: o desencanto apocalíptico ou a redenção a favor do transe encantador das imagens. Observando a carreira de Navarro antes e depois desse vídeo não é difícil definirmos qual a escolha mais evidente, necessária.

Matéria - Cinema Internacional
Tarefa - Estudar pra prova de amanhã


quinta-feira, 28 de abril de 2011

Tio Boonmee, que pode duplicar a experiência do visível

O filme desfocou umas três vezes, a luz vazou da tela, mas foi engraçado como esses pequenos defeitos de projeção contribuíram para que os sentidos simbólicos de "Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas" ganhassem ainda mais campo e profundidade. Depois dos primeiros trinta minutos olhei pra cima, busquei o feixe de luz do projetor, o segui até a tela como se desse conta da simplicidade daquele processo pela primeira vez. Olhei ao redor, a sala de cinema quase cheia e eu no meio de dois casais, que eventualmente sussurravam piadas e comentários sobre um filme que eles julgavam por dois aspectos que, por excelência, deveriam ser secundários: a palma de ouro em Cannes e as cinco estrelas do jornal. "Como é que pode?! Esse povo ta doido...", disse um deles rindo, provavelmente se referindo ao júri que premiou o filme e ao crítico que pontuou as estrelinhas. Essa revolta, aparentemente ingênua, acabou sendo bastante pertinente pra aquele momento, no meio de um filme que questiona com tanta eficiência nossa crença cinematográfica, e mais que isso, nosso encantamento sobre as imagens, o que enxergamos ou o que inventamos sobre nós em sonhos, na morte, no futuro. Esferas de realidade construídas internamente, antes de tudo, através de cenas, sequências e planos. Tio Boonmee está cercado dessas janelas, se abrindo literalmente como pontes pra ver além (pro além) do nosso conforto cético, condicionado ao ritmo frenético da informação. Não à toa os personagens do filme se deslocam, logo no início, da cidade pra uma fazenda distante, calma e cercada por uma densa floresta que abriga sombras, almas e seres jamais desprendidos de suas responsabilidades e memórias. Guiado por esses princípios o filme potencializa esses lugares da ação, concedendo a geografia do “primitivo” (montanhas, florestas e cavernas) uma consagração espiritual, onde os vínculos e reencontros são concretizados, mais do que nos reconhecidos espaços da fé: “o céu é superestimado, não há nada lá”, diz o fantasma da mulher do personagem, e logo, ao final, o monge troca seu templo sombrio por um quarto de hotel aconchegante, com vida. Assim também os animais carregam uma espiritualidade ciente e poderosa, capaz de estabelecer as mais diversas relações entre os mundos, sendo até mesmo agentes de contato e transformação entre eles. As fábulas contadas dentro filme reforçam tanto o inconformismo com as limitações e imperfeições físicas do mundo material, quanto o fascínio por outro modelo de existência. O macaco fantasma é um ser resultado desse encantamento por uma imagem mítica, onde só uma lente de câmera pôde registrar, lhe levando a ser o que buscava. Em outro momento a princesa se deixa envolver pela divindade que é a natureza graças a insatisfação com seu rosto, se entregando ao diálogo, a cópula com um bagre, elevando seu reflexo não mais do corpo, mas da alma, como era a que o rio lhe apresentava em sua margem no início da sequência. Em ambos os momentos é o questionamento da imagem seguido do ato sexual que definem a experiência da transformação, ou seja, elementos inerentes a nossa natureza. Essa importância animal como recurso mitológico e de contato com o mundo-além acaba espalhada por várias outras sequências através de insetos, vacas e macacos. Uma relação muito mais comum dentro da cultura oriental e africana.

Esses elementos estão alinhados com a busca por uma afirmação e reconciliação dos carmas, vidas passadas, mas com a própria história presente e com as pessoas que lhe deram sentido. O diretor Apichatpong Weerasethakul (tente repetir esse nome três vezes em voz alta) condicionou seu tempo narrativo a esse compromisso com a memória, espaço e eternidade em um tom extremamente consciente de sua projeção criadora de presenças, no fazer (re)enxergar em um mundo que não deixará de nos surpreender justamente pelo que cremos e duvidamos... Esse encontro entre as possibilidades (visível/invisível, carne/alma) na mesa de jantar parece o mais conciso ponto pra essa metáfora da presença, do milagre da luz, estabelecido através das duas cadeiras vazias à espera dos visitantes. Há uma serenidade comovente no personagem-título com seu modo de reagir ao aparecimento do espírito da mulher e do filho metamorfoseado em macaco fantasma. A cena provocou riso em meus companheiros de sessão, mas estávamos (rindo ou não) diante daquilo que se espera do cinema enquanto arma motivadora de encantamento, no sentido mais simples da expressão. Se a câmera trépida e uma lanterna podem nos guiar por uma gruta enquanto ouvimos o sonho do Tio Boonmee à beira morte, é porque nos entregamos a essa a crença de alterar a ordem do bruto do mesmo modo que a princesa ao rio, o tio a caverna, o homem a imagem que fotografou. Por isso que talvez, no início da sessão, quase involuntariamente segui o caminho da linha iluminada até a tela, numa tentativa de duplicar a experiência, enxergando algo mais que três pessoas vendo televisão (lá) e outras dezenas, ao meu redor, vendo um filme qualquer. "Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas" é um cinema ritual, holístico, de eterno retorno.

Luz do sol

Que a folha traga e traduz

Em ver denovo

Em folha, em graça

Em vida, em força, em luz...

C.Veloso


segunda-feira, 11 de abril de 2011

Entre o fim e o encontro - Finisterrae

Tenho quase certeza que sonhei com esse filme alguma vez. Foi isso, esqueci, esqueci logo quando acordei. Só isso pode explicar tamanha força que certas imagens provocaram... É como quando a gente lembra de uma cena infantil que já estava quase se perdendo com os anos, na maré que leva um monte delas enquanto vivemos outras coisas. De repente um papo, outra cena, um filme, nos remete a esse diálogo estranho de sensações. É daí que parece que há mesmo um meio melhor de construir, apalpar e esculpir o tempo. Finisterrae acaba sendo não o fim do mundo, mas como os desconhecidos se encontram, e mesmo confusos e excessivos, se fundem.

viva!

terça-feira, 5 de abril de 2011

isso é pura carência mesmo

Cena 3 - Manhã, sala de espera de um consultório médico.

Ele não suporta o olhar gélido da mulher do outro lado da sala. Ela lixa a unha, atende o telefone e sorri como se tudo guardasse o mesmo nível de desinteresse. Ele espera a vez com as mãos levemente suadas sob os joelhos. Se mexe pouco, como se aquilo ajudasse a controlar sua aflição. A capa da revista à sua frente já é quase motivo de asco. Um grande sorriso, uma grande atriz, uma bela merda, pensou. A porta abre e ele agora é chamado para entrar... O médico parece exercer o mesmo personagem da secretária. Ele que agora não se importa, não quer saber ou olhar. Preciso de uma cicatriz doutor. A atenção do médico se renovou. Fazia 3 anos e pouco que ele não ouvia algo tão estranho. Onde? Perguntou depois de devolver as sobrancelhas pra um lugar menos tenso. Inquieto o homem que quer uma cicatriz e que se incomodou com a secretária, com a revista e a cor das paredes do consultório, não responde. Agora o médico toma de vez a palavra explicando o quão cara iria custar tal procedimento, tendo em vista a raridade do pedido. Tudo bem, só preciso dessa cicatriz. O médico começa a escrever algo num papel, balança a cabeça, confere sua agenda, tosse e começa a chorar copiosamente. Em seguida segura firmemente as mãos do paciente. Está constrangido, mas continua soluçando com as lágrimas. Desculpe, eu só precisava chorar um pouco.

Cena 4. Noite - Quatro pessoas sentadas em uma mesa em uma varanda alta.

Rapaz 1 (camisa listrada):
- Não sei se gostei. Não sei se esses dois homens conseguem me transmitir alguma coisa interessante como na cena anterior.
Moça 1 responde (mascando chiclete):
- Calma, pretendo trabalhar melhor esses diálogos. Mas quero mesmo essa estranheza...
Rapaz 2 (esticando o braço):
- Eu gostei porque consegui visualizar cada rosto... Me pareceu familiar, não sei...
Moça 2 (com a caneta prendendo o cabelo)
- Isso apareceu do nada?
Moça 1 (coçando o canto da boca)
- Essa História?!
Moça 2 (rindo levemente)
- É.
Moça 1
- Tive a idéia enquanto conversava com meu avó. Ainda não sei o porquê.
Rapaz 1 (acendendo um cigarro)
- Não precisa ser estranho só pra ser estranho . Onde estão as razões?
Moça 1
- Quero algo sobre reações, necessidades contidas, mais que razões.
Rapaz 2
- Acho que nunca será gratuito mostrar um homem que crê numa cicatriz, algo pra lhe ajudar a inventar sua história, e outro que achou que tinha a chance certa de chorar.
Moça 2 (surpresa)
Nossa, mas será que é isso?
Moça 1
Que nada, isso é pura carência mesmo.

Todos riem por um instante, mudam de assunto, contam histórias, uma vai ao banheiro, outro a geladeira.

13 minutos depois

Moça 1 (batendo duas palmas)
Ok, vamos continuar...

quarta-feira, 23 de março de 2011

Sobre obstrução e arbítrio

"Bom dia, por favor, você sabe se aqui reconhece firma?". Eram oito e meia da manhã e eu não estava mesmo afim de fazer aquela pergunta, tamanho nível desagradável de risco que ela representava. Atravessei a carcomida porta amarela do cartório com uma cara de espanto e busca por uma humilde senha - símbolo maior da passividade - e me sentei naquela que seria minha cadeira nas próximas horas. Longas horas... Tudo por causa de uma coisa de nada de uma assinatura.
Há um clássico filme cubano que conta a história de como enlouquecer com a burocracia. "Morte de um burocrata" foi o filme em que Titón quis simbolicamente matá-la, tamanha era sua monstruosidade. O processo de reorganização da sociedade cubana no pós revolução não parece em nada com a nossa caótica bahia de sempre... A não ser claro, pelo instinto assassino que papéis, autenticações, declarações, e toda essa coletânea de pequenos ingressos para o purgatório nos causam em manhãs de terça-feira. Me senti na película, mas pior, sem o humor que tanto a caracteriza e amplia sua crítica.
Trinta era o número que eu era ali. Um número atrás de vinte e nove outros que precisavam também provar algo, mas que acordaram mais cedo, chegaram mais cedo, atravessaram a carcomida porta mais cedo. A atmosfera do lugar era uma enorme concentração de energias em processo de intenso desgaste. Testas contraídas, pés marcando como um ponteiro de relógio, olhos pulando de canto em canto, de cena em cena, num voyerismo coletivo e atroz que espera, mas nunca sabe quando aquilo irá se resolver. Bigbrothers de nós mesmos muitos convertiam suas tensões em conversas amenas e inúteis, enquanto outros, em uma fúria peculiar e interna, se calavam pela falta de capacidade de articular uma revolta contra tanto emperramento. Creio que são nesses momentos que o organismo não consegue se auto defender por estar gastando toda a energia em controlar o cérebro, e aí que aqueles pontos de gordura tem espaço e começam minimamente a obstruir uma artéria, uma célula ruim a se multiplicar, uma ferida começa a irritar, a perna a coçar, o juízo a se deslocar.
Ali logo a frente, no balcão, uma pessoa - que não tinha número - atendia todo esse tudo com a cara de quem tem que aguentar aquilo por horas e horas todos os dias. A única, única pessoa que ali atendia parecia justamente a que mais havia perdido a capacidade de diferenciar educação e maldade, seja no tom de voz, seja no modo de lhe olhar, negar, confirmar. Tudo era dito de uma só e rasteira maneira. Nesse momento percebi que não é apenas o caos que selvageriza as pessoas, mas também essa burocratização que crê tanto si, e em sua função primordial de organizar o mundo. "Isso aqui é inferno" sentenciou um senhor alto e negro com olhos de desilusão. Mesmo sabendo que há, não quis imaginar o que é mais inferno que aquilo, justamente porque, francamente, corria sério risco de me tornar como aquela única, única pessoa que atendia todo mundo naquele balcão.
Havia uma incrível dinâmica de troca de senhas e modos de burlar a tal burocracia, coisa que só pude observar, resignado por minha inexperiência em tais manhas do mundo das filas e esperas. O número de gente atordoava: iam e voltavam, perguntavam, erravam de porta, voltavam, tiravam cópia, tomavam espaço, lamentavam o fim das senhas, interrompiam o atendimento e faziam tudo outra vez... Comecei a meditar e elevar minha cabeça pra uma rua vazia, clara, longa em que corria livremente com uma marreta nas mãos, derrubando postes e destruindo carros, tocando campainhas e fugindo. Pouco antes de subir em uma árvore fui interrompido por uma voz intrusa que me perguntava em qual número/senha estávamos... "13", "15", "15", "17". Em menos de dez minutos essa mulher me perguntou quatro vezes saindo e entrando no lugar com uma cara suada e tonta de quem estava já se perdendo na própria incapacidade. Comecei a pensar nesse texto, imaginei frases e caracterizações, mas logo me dei conta de sua inutilidade como testemunho, pobre e infértil na tentativa de enfrentar as normas através das palavras. Seria óbvio demais mais um texto que resolve falar mal das coisas que atrapalham as ações de seu autor.
Só o ônibus que peguei pra chegar em casa me fez mudar de ideia. Ali, em mais um coletivo, encostando minha perplexidade e cansaço num banco plástico, sem conseguir enxergar muita coisa além do ardor solar sob meus olhos, pude contemplar a desesperança que me acompanhou até poucos pontos antes do meu. Quatro horas e meia de escuridão eram demais pra um espírito que se pretende algo mais que simplesmente ter que se acostumar a sobreviver... Não, não podemos! Um dedo de repente encostou sob a bandeira chilena pregada em minha mochila, fazendo comentários que mal pude entender no princípio. Era o cobrador, sorridente comentando que gostava do Chile por sua história, sobre Allende e outros míticos personagens sul-americanos. "É com algumas pessoas que a gente vê o quanto a gente faz pouca coisa né...", comentou logo depois de citar Che. Eu apenas respondia e comentava, observando sua vontade e entusiasmo de falar com alguém que lhe permitia algum diálogo, mais que apenas comentar sobre o tempo. Foi uma pequena conversa, mas fiquei surpreso, não pela sabedoria ou pela espontaneidade do cobrador sorridente ao falar sobre tais assuntos, mas pelo choque que o mundo é capaz de provocar numa mesma manhã. Se por um lado ele nos entorpece de desgosto, por outro nos conduz a acreditar que somos mesmo uma força espontânea que é antes tudo fluxo que obstrução, mais arbítrio que subjugação. Então, foi alguma perda da memória coletiva que nos fez assim?!
Esquecidos ou não, sei que preferi ficar com o segundo ato daquele dia, que já iniciava sua tarde.

Por enquanto acho melhor colecionar, por via das dúvidas, alguns desses pequenos momentos de choque pra que nem tudo fique a mercê dessa irresponsável memória que nos sobra.

Ps: Artérias liberadas, células em bom estado, pernas sem coçar e juízo em plena soltura...


domingo, 20 de março de 2011

segunda-feira, 7 de março de 2011

A festa ou Os trépidos sons do chão

Era do chão que se podia ouvir o tamanho da festa. Interessante que qualquer um, mesmo de longe, poderia encostar o ouvido sob o solo e sentir como os pés da multidão ensurdecia todo o resto, colidindo-se insistentemente, desordenados em torno das luzes e sons que vinham do alto. Em cima o Rei, chamando todos os olhos da gente pra si como um enorme vaga-lume. O homem em destaque não ostentava uma coroa sobre a cabeça, mas gestos firmes, cantos, gargalhadas que pareciam ecoar do seu palco num tremor sísmico, fazendo com que toda imensa gente repetisse cada ato seu com um desespero alegre, ridículo, porém comovente. Cada fala, melodia ou movimento corporal era acompanhada por uma orquestra que tentava dar conta dos improvisos repentinos do Rei.

No nível mais baixo, claro, haviam ratos que de tão invisíveis chegavam em qualquer dos vários lados, mordendo pequenas migalhas caídas do alto, sendo notados apenas quando esmagados pelos pés agitados.

Já haviam dias que tal ciranda convulsa se entrelaçava entre risos e choros. Mesmo cansada de sede e suor aquela gente não dispersava, não sem que antes contemplassem o fim da festa, que diziam ser a melhor das partes. Alguns caiam desvalidos se juntando aos seres do chão em sua morbidez e invisibilidade. O Rei feio e grotesco ia alternando seu espetáculo com outras atrações como o Vesgo que assobiava valsas, a Bailarina que dançava o balé das estátuas de gelo ou o cachorro que nunca latia.

Depois da criança cinza que batia palmas ao contrário, o Rei, buscando surpreender seus milhares de convidados exaustos antes que sentissem uma peculiar monotonia, resolveu extravasar: tirou dentre suas pernas um enorme pedaço de carne tão crua que parecia ter sido arrancada ali mesmo. A gente toda se calou hipnotizada pelo brilho de pedaço morto ainda salpicando em sangue, que não se sabia ao certo de qual animal saíra. Observando a reação do seu público o Rei arregalou os olhos ainda mais vermelhos com um desejo que lhe fez externar sua língua roxa, desfilando-a por pelo menos quinze centímetros na superfície da suculenta carne... Viu toda aquele gente agitando-se ainda mais, berrando num coro que fez toda a orquestra parar instantaneamente.

Exposta, exibida em riste, apodrecendo em minúsculos vermes famintos, a carne se mantinha presa firmemente entre os dedos do Rei, que lentamente iam se abrindo, um a um, em um ato solene de tão lento. A multidão já se amontoava em cabeças de bocas abertas tentando não desperdiçar nem os mínimos líquidos viscosos que dali escorriam. Pena não haver aí qualquer pintor ou câmera capaz de registrar o tal pitoresco instante, menos ainda havia quando finalmente se foi pelo ar a carne por entre o povo que lhe esperava impaciente. Pouco se pôde saber a partir daí além que aquela gente se meteu em apertos insuportáveis em troca de pelo menos uma lasca da carne que de tamanha confusão se mesclou aos ratos, pernas, pés, ou qualquer tecido vivo que os dentes pudessem segurar. As pessoas foram se amassando, mordendo, se rasgando e mastigando por horas e horas até que tudo virasse uma mesma massa desforme, largamente espalhada em tons de cores irreconhecíveis.

E o Rei depois de muito esperar, protestar atenção e dormir, se viu só, tão só que se despiu e gritou forte pra sinalizar - como se necessário – o término daquilo que continuavam a chamar de “a festa”, talvez por falta de termo mais adequado e historicamente aceito. Aqueles que comentavam e ouviam tudo através dos trépidos sons do chão finalmente se ergueram e seguiram suas vidas até a próxima vez onde quem sabe, com esperança, poderiam participar não apenas com os ouvidos, mas com todas as próprias carnes.

Tamanhos sacrifícios nem mesmo Deus aguentara mais ver e gostar.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Em um quarto de uma vida bagunçada

Era uma vez uma verdade que eu tentava evitar... Sobre meus pés havia um reino de inutilidades unidas por fibras de celulose salpicadas com densas camadas de poeira. Eram provas, cópias, revistas, cadernos e todo tipo de coisa que se empurra num canto propício ao esquecimento, mesmo crendo que estava aos poucos montando um arquivo digno em um quarto de uma vida bagunçada. Não quis mais me apegar naquela desculpa de que pessoas muito organizadas sofrem algum tipo de sentimento de culpa ou trauma infantil. Era momento de se impor sobre aquele caos organizado em pastas e envelopes de cores variadas, casa dos tipos mais estranho de aranhas menores. Mesmo protegido por máscara, luvas e anti-alérgico quase entrei em fase de arrependimento quando me dei conta do tamanho da responsabilidade que a empreitada exigia. Ler, selecionar, descartar, agrupar... Nunca estive tão próximo das leis que regem a arquivologia. A cada folha conferida ia me perguntando revoltado a razão de um dia ter achado aquilo realmente necessário pra estar ali guardado. Impiedoso como Ganesha - o removedor de obstáculos - fui preenchendo sacos plásticos com todo desnecessário que estava cercando por anos meu desenvolvimento material/espiritual, e pior, sem que eu me desse conta disso.

É, o que serviu nem sempre serve pra sempre.

Pequenos exemplos das mudanças tecnológicas iam ressurgindo, demarcando uma jovem velhice que ganha forma através do culto de objetos obsoletos. Eram clássicas fitas-cassete, alguns disquetes, cd's e tudo que já deixamos pra trás em troca de um mínimo pendrive. Não podia me iludir, a tecnologia não me salva nem salvará ninguém!
Uma batalha silenciosamente era travada naquele mesmo piso de madeira retangular: em um canto do quarto um belo montante de xerox de clássicos textos (Thompson, Galeano, Engels, etc), pedaços de livros e teorias que eu certamente não iria reler X no outro canto livros ainda não lidos, carentes de atenção, mas que eu não sei se vou ler.

Aos poucos aquele cenário conturbado foi se transformando num pequeno templo de relaxamento, leveza, próprio pra canções e mantras védicos em nome do desapego. "Hainana hari hari vaiprala, hainana hari hari fikqui". Fotos, cartões de banco, uma bola de gude, fios, sapatos, postais. Tanta tralha representava bem a necessidade de reciclar um passado diante de um presente que exige mais espaço pra fluir. Daí que uma constatação óbvia firmou-se sobre meu suor: preciso dessa habilidade do desacúmulo pra mudar. O desafio é maior que deslocar, desfazer, mas recriar movimento a favor dessa mutação inevitável.

"Hainana hari hari vaiprala, hainana hari hari fikqui"

Uma revolução parece sempre começar assim mínima, pelos cantos, nos quartos e em suas bagunças que lentamente nos organizam pra guardar e modificar.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Cisne Negro e a crença no orgasmo cinematográfico

Terminado o filme esperei os créditos acalmarem os nervos e a pausa certa entre a respiração. Confirmei que Aronofsky acredita fielmente em um tipo de orgasmo cinematográfico. Suas tramas se desenvolvem nessa crença em que todas as forças devem se direcionar para um momento, sendo todo o restante anterior do filme mera justificativa para que a catarse final jorre livre e soberba. Em toda sua filmografia - "π (Pi) ", "Réquiem para um sonho", "Fonte da vida", e de um modo mais equilibrado em "O lutador"- há essa mesma obsessão pelo "grande fim".
Acostumado a tais dramas masculinos o diretor se aventura agora em um conto de fadas trágico, tentando um mergulho na persona da frágil bailarina. Se tal escolha parece nobre por outro lado acaba também exibindo a incapacidade dos artifícios utilizados pelo roteiro em garantir a densidade necessária à história nos momentos secundários. As incontáveis tensões-seguidas-de-sustos e confrontos com o espelho se repetem como se o diretor e os roteiristas não quisessem ou pudessem apostar totalmente em uma dramaturgia psicológica mais densa, capaz de usar o tempo a favor das imagens, das revelações, ou ainda melhor, das dúvidas sobre os personagens. Essa proximidade com as fórmulas que a maioria do cinema atualmente se apóia acaba esbarrando com o que diretor conseguiu de melhor em seus filmes anteriores. Como em "π (Pi)" a câmera na mão, trépida se envolve no caos interno da personagem, tornando cada movimento - principalmente nas cenas de dança - uma extensão do corpo. Essa variação entre formalismo batido e talento acaba mantendo o filme em linha horizontal por um bom tempo.
"A única pessoa que está no seu caminho é você mesma" - Há momentos em que um certo didatismo parece querer entregar todo o conflito contido em Cisne Negro, que não tarda a demonstrar que não importa tanto qual verdade ganhe a tela, mas justamente onde e como ela irá surgir. Esse compromisso com o momento é o acaba limitando por vezes a potência discursiva do filme e de como ele quer nos levar até .
Todo o entorno da personagem é explorado através de diversas pistas e referências psicanalíticas, onde por trás da mãe super protetora há uma vilã em potencial contra sua autonomia, do mesmo modo como a colega de balé é rival para o seu grande objetivo de ser a principal dançarina do clássico Lago dos cisnes. Thomas (diretor da companhia de balé) é a mescla da figura paterna e do príncipe que Nina nunca teve e que por isso anseia por alguma atenção/aprovação desesperada. O balé, além de forte elemento estético, ilustra a alegoria da disputa entre as contradições que cercam o mundo de Nina - dor e beleza, leveza e rigidez, a arte e o modelo de perfeição - lhe pressionando não pra fora, mas contra si mesma.
Assim a questão não é tanto se a personagem é vítima de si ou do contexto em que está exposta, mas principalmente de como ela sairá dele. Seu conflito é antes de tudo um grito do corpo (como na história do lago dos cisnes), da necessidade inconsciente de quebrar uma estrutura repressiva mesmo sem entendê-la. Dessa angústia o palco em vez de espaço de redenção se converte em arena de sacrifício, as palmas são como um coroamento da metamorfose, do descobrimento... A consciência de si elevada a emoção máxima, única e irrepetível.

Cisne Negro transborda tudo até não sobrar mais que um silêncio atônito que se permite quebrar com apenas uma ordinária e subliminar pergunta: foi bom pra você?

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O sonho da casa vazia

outro dia sonhei que você me visitava
me contava suas notícias no ouvido
gargalhava as melhores memórias
e o receio da distância forçada

sonhei que naquele fim de tarde
havia tempo pras coisas descansarem
esticar os braços pra cima, nas folhas
nos cantos partilhados

caminhamos com um vento leve,
quase raro ultimamente.

eu tive um sonho onde chegava aquela carta sua
cheia de rasuras e reticências
li essas letras explicando o sumiço
a razão, o estado da vida apressada
diminuída...
no fim você desenhou uma árvore alta
parecida com a que plantamos juntos no quintal

depois de assinar você disse que estamos
sempre voltando pra casa...
é. acho que é isso mesmo

foi bom, mas tão pouco;

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Ressonância (ou sobre a simples dificuldade de perceber)

A rua entra pela janela em movimentos firmes, denunciando a vida lá fora. As folhas de um pé de pau regulam a luz, esta, cambaleando va-ga-ro-sa-men-te rumo ao cômodo da minha insônia. Os pássaros consolam sem cuidado um gato que mia, abandonado.

Eu aqui, fico tonto de tanta coisa capturando minha atenção, carente de sentido. É inútil tentar domar as palavras, quando vêm em revoada, melhor torcê-las do lado avesso. Divago sobre o caminho que percorrem, silenciosas, enquanto esperam pra se derramarem bêbadas, bêbadas de adjetivos.

Uma menina que não conheço me sorri de longe vários sorrisos, me chama pra vê-la dançar num dia nublado na praia. Uma outra menina a quem desejo um bom dia, retribui, e ganha um beijo escondido... Uma terceira me embaralha as ideias, me faz procurar uma estrada pra voltar.

Parece que acabou, mas vou fingir que não. Tem tanta coisa escondida da janela pra fora, mas é só daqui que as enxergo.

por:leo coutinho

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

um testemunho do distanciamento

Quis filmar seu redor, só...

Demorou duas semanas até achar que aquilo tinha algum sentido. Foi em seu último dia que acordou antes do sol e saiu com uma câmera velha. Lentamente foi pescar imagens daquele lugar que não sabia quando voltaria a ver. Começou pela janela, daí pra grama, pros próprios pés, folhas molhadas soltas no ar, ruídos aleatórios fundamentais pro início de qualquer último dia.

Apenas através do aparecimento gradual da luz as coisas pareciam realmente revelar-se, talvez por aquele olhar ter ganhado também aos poucos uma pequena intimidade para que daí sim poder mais que ver, reparar, conceder um pedaço a mais de memória, na verdade extensão artificial onde a cena guardada em frames poderia chegar num futuro próximo a outros, olhos, impressões.

Descobriu um lago ali logo atrás onde jogou uma pedra no meio e esperou que as pequenas ondas formassem um grande alvo como se a espera do apontar certeiro da lente da câmera. Ficou pensando depois do click que poderia ser ele mesmo feito daquilo - uma imagem besta de 13 segundos – um lago qualquer que não sabia ao certo a própria profundidade, reagindo lento a uma pedra largada em seu meio.

Ia seguindo assim atrás de pequenos movimentos que nada tinham de realmente extraordinários, porém tradutores, como sintomas do que inconscientemente sentia. Um ciclista distante, uma casinha fechada... Filmou também três cães sujos caminhando juntos como se pra um encontro marcado, parando e cheirando, sempre se reagrupando. Um último cão pardo mais desinteressado no improvável encontro, se distanciando dos outros de repente percebeu (diferente do resto) aquela presença de olhos cansados... Começou a segui-lo, ele, a câmera. O cachorro agora apartado do grupo parecia quase um guia, melhor, também personagem daquela história esquisita, mesclada sob a ilusão dos sonhos, memórias e mais um pouco de tudo que não se consegue palavras pra se organizar.

Toda essa parafernália de pequenas ações captadas foram devidamente salvas e transferidas, convertidas, editadas, no entanto não tardaram a seguir a lógica que rege toda essa fatídica ordem... Em outro dia, que ainda não se sabe qual, se perderam, esquecidas sem qualquer cerimônia, viraram enfim ausência, sem futuro próximo a outros olhares. Corroídas em som e vídeo surgem agora apenas depois que tapados os olhos - sob a proteção de Mnemósine - inventando diálogos em outros formatos, caminhos.

Deixemos que tudo seja simplesmente aquilo que em essência veio ao mundo cumprir como principal função... ir-se, passar.”