quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Um cinema mais que cinema - O ANTICRISTO

"O artista existe porque o mundo não é perfeito" - Tarkovsky

Num determinado momento de O ANTICRISTO os pensamentos se perdem, as idéias e interpretações viram alpiste, a capacidade de definição não faz sentido… Somos tomados de forma tão pungente pelas imagens que a poltrona parece se contorcer junto com o corpo. Lars Von Trier parece ter tanto a mostrar que não deixa muito espaço durante o filme pra nossas próprias reflexões, ou pelo menos pra sua organização. As imagens por si só parecem silenciar o texto. A plasticidade suavizante das primeiras cenas já nos apresenta um universo regido pela crença absoluta na imagem. A ópera de Händel, o preto e o branco, a hiper-lentidão da penetração, da colisão entre os corpos, da queda da criança, guardam uma beleza trágica e perversa que não nos poupará do choque... E não há outro meio pra chegar ao que o diretor /autor quer nos dizer, pra tentar entendê-lo há de se ter muita responsabilidade e espírito livre.
A impressa cinematográfica gasta centenas linhas pra falar da polêmica estréia do filme no Festival de Cannes, sobre a depressão do diretor, das chocantes cenas, etc. Na análise de qualquer filme de Lars Von Trier todas essas reverberações devem ser levadas em conta, o problema é quando essas acabam sendo mais discutidas que o próprio filme. Claro, a polêmica toda sempre vende mais, e ele próprio tem parte de culpa nisso. Acho que é dessa superficialidade, e da impressionante necessidade de discutir e mastigar cada cena, que meus dedos coçaram compulsivamente pra escrever. Saí da sessão embasbacado, desnorteado, torcendo e esperando os pensamentos educadamente se recomporem.
O Anticristo é o mais pretensioso de seus filmes. O diretor parece querer fazer do seu cinema mais que cinema, mas também cura de suas próprias dores e questionamentos. Será que o artísta precisa experimentar de uma dor incalculável pra depois expulsá-la com Arte?! Muitos exemplos provam que sim, e Lars nos mostra seus próprios pesadelos na tentativa de descortinar as dores e culpa de toda humanidade. Esquizofrênica tentativa! (O que seria de nós sem elas?!)
Sua tese aqui é sobre a existência, sobre a representação que fizemos do Bem e do Mal pra julgar e edificar nosso mundo. Ondas do destino, Dançando no escuro, Dogville já contemplavam com a mesma visceralidade esses aspectos, mas o exorcismo do diretor aqui parece ainda mais desesperado e urgente. Pra isso ele se apropria e subverte o próprio emperrado gênero de Terror (o título já é uma clássica referência do estilo, que claro guarda significados muito maiores).
A densidade sufocante do filme potencializa o maior dos enfrentamentos: Ela e Ele no Éden pra um histórico e doloroso acerto de contas! Se a Bíblia nos conta a historinha da criação do mundo, Von Trier irá desconstruí-la pra provar o quanto somos contra a idéia de perfeição... O Homem é incompatível com a Natureza justamente por não aceitar seu grandioso poder. Tudo diferente do Cristo foi demonizado e subjugado: o corpo, a mulher, a natureza, os índios... E por aí vai, uma longa lista de cristianizados na base do fogo. O Cristo que é homem que é a civilização contra a Natureza que é Mulher, e por isso Igreja do Demônio. O "caos'' dessa Natureza é tudo de que o homem sempre buscou fugir, desorganizando o orgânico pra estruturar a ilusão de um mundo superior, ''limpo''... Mas a raposa avisa que "o caos reina'', porque a Natureza é maior, e é aí que está todo nosso desespero. Sufocar, queimar, estuprar, escravizar não poderá conter sua impiedosa resposta final.
Se o sexo é o único elo entre esses mundos, e da procriação trágica da humanidade, ELA abortará tais possibilidades ejaculando sangue, cortando o clitóris, permitindo a queda do filho. Ela é a catalisação de Grace, Bess, Selma dos outros filmes de Von Trier, o que faz da melhor parte da sua filmografia um só grito. E desse agudo som todas essas Evas lentamente virão morro acima nos colocar junto da mesma absurda e desordenada fogueira, que de tão alta pode atingir a essência daquilo que misteriosamente somos feitos, mas que nunca realmente queremos enxergar.

Em O Anticristo Nietzsche diz: "É um doloroso, um arrepiante espetáculo que despontou para mim: abri a cortina da corrupção do homem." E ainda... "É necessário ter o caos cá dentro para gerar uma estrela". Interessante coincidência? Nada parece gratuito nesse filme. Assim como a justíssima dedicatória final ao mestre Tarkovsky. Através dessas referências podemos imaginar a abrangência simbólica e física dessa obra, que continuará maldita, Antiparalisia, Antidepressiva, amaldiçoada pela capacidade de perturbar nosso letárgico sono, elevando nossa natureza para muito além dessa covardia que nos ensinaram por tanto tempo.


ps: todas as divagações e delírios desse humilde texto são de inteira responsabilidade da chuva torrencial que cai aqui fora, mas que invadiu também minhas reflexões... A natureza é mesmo demoníaca!

por: ramon m. coutinho

16 comentários:

Alessandra Negrão disse...

O texto está maravilhoso. Mas como eu morro de medo de sentir medo, infelizmente esse eu não vou ver. Já tive medo do trailler. Rs. Menina boba essa. Fico sem dormir.

Leo Coutinho disse...

O que mais pode querer um artista senão brincar de destruir-construir, reinventar o que vemos, somos, sentimos? Pode querer fazer disso uma brincadeira que estapeie o óbvio, e que subverta o óbvio, as expectativas, o "sono letárgico" e todas as mentiras bem contadas... E ainda não fui assistir... Véio, o texto tá foda!

Iara Canuto disse...

"O caos reina". rs.

Alda disse...

Seu texto está maravilhoso, discreve com bastante precisão, o O Anticristo,acabei de assitir ao filme e sair do cinema muito confusa e bastante reflexiva, gosto desse impacto que certos filmes me causam.

Murilo Gazzo disse...

Texto sensível e muito bem construído. Acompanharei o espaço Ramon.

Já está na minha lista de leitura.

Abraço.

Anônimo disse...

Fui assistir ao filme meio que obrigado, como tentativa de sair do péssimo-estar em que eu estava aqui em casa. Saí do cinema me sentindo renovado.
O filme vai direto à essência de nossa vida... tudo aquilo que remete ao prazer e dor, sexo e violência. O ser humano tem medo dessa natureza caótica (não significa necessariamente algo ruim), e tenta alcançar seu próprio paraíso de humanos, com alguns cachorrinhos poodles. Mas não adianta, a cidade como reflexo desse distanciamento da "selvageria" das floresta, acaba por criar condições auto-destrutivas. Selva sempre vai existir.

Identifiquei-me bastante com o filme, vide minhas criações, tipo esse desenho: http://arturrios.files.wordpress.com/2009/06/desenho-sem-titulo-ok.jpg
me diga, não é a cara do filme isso?hahahaha

tá massa o texto vei, falow!

subliterato disse...

porra Tão que contribuiçãoo !!
manda esse desenho pro Lars, quem sabe ele coloca no extra do dvd do filme!
valeuu

Julio Domingos disse...

Baleiro diz ser o diabo o cara mais underground que ele conhece. Afinal quem está para além do bem e do mal? Encontro o anticristo depois te falo o que rolou. Agora, o texto não foi inspirado, foi fumado... rsrsrs

Unknown disse...

ô vei...n vale ficar me fazendo ler essas coisas e me deixar com vontade d ver o filme n...cachoeira eh foda kkk...qro v logo o d tarantino tbm... belo texto...abraço

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Álvaro Andrade disse...

Massa o blog, meu velho!

postei minha crítica de "A Idade da Terra" no meu, depois dê um saque.

Abraço!

Unknown disse...

Parabénssss Mon!!!!

Aline Bessa disse...

Ramon,

Ótima crítica para um excelente filme. Vida longa a von trier!

sagaranas disse...

Pré Anticristo: Ansiedade e agonia.

MIDIA: Von Trier escorrega em filme feito em momento de depressão;
VOCÊ: Ainda estou com ele aqui na cabeça pulsando, em seguida, texto instigador aqui no sub;
DANIELA: Não gostei de Anticristo, Von trier tentou ser cult demais, acabou estragando tudo;
JUNIOR: Não sei o que achei do filme, nem consigo defini-lo na minha cabeça, só sei que não é o melhor Lars Von Trier, e que não consigo ver esse filme novamente;
ALDA: Não sei como defini-lo, mas não digo que não gostei me deixou reflexiva, me impactou bastante;
COLLING: Um dos melhores filmes que vi nos últimos dez anos.
ANA: Detestei o filme! Sai do cinema dando graças a Deus, por aquilo tudo não existir na vida real. (O mais agoniante dos comentários; como assim? Um filme de Von Trier não tem nada de vida real?).

Durante Anticristo: Ansiedade, agonia e êxtase.

Logo na primeira seqüência, me senti apunhalada por toda visceralidade daquelas imagens. Aquele sincronismo perfeito entre o embate de corpos e a música de Handel, a fotografia em preto e branco misturada com a agonia do sexo e a puerilidade do menino, indo de encontro com o desaparecimento. A contundência da interpretação de Charlote Gainsbourg... Mal conseguia respirar, mal conseguia digerir, aquele novo Lars, se apresentando pra mim, me jogando num vórtice de beleza, caos e insanidade.
Ao longo do filme, meus pensamentos embaralhavam-se com a lembrança dos comentários que ouvi pré anticristo, buscava involuntariamente um link com cada um deles, o que muitas vezes piorava a degustação e em outros elucidava –a.

Pós Anticristo: Agonia, êxtase e reverência.

Ao término do filme, a agonia deu espaço à reverência.
Me vi constantemente pensando em Lars.e em todas as suas indagações acerca da razão do sofrimento humano. Pretensiosamente tentei me ver no lugar dele, tentei imaginar qual teria sido o itinerário de sua dor? Qual teria sido o motivo ou motivos de sua depressão? Como deve ter sido o processo de expurgo de tanta dor num roteiro, e por fim, na construção das imagens? Como que se consegue isso tão eficazmente? Por fim, acabei desistindo de tal pretensão. Percebi que o brilho estava justamente nessa enxurrada de reflexão e questionamento a que a obra me levou, e ai estava toda genialidade de Lars, levar o filme para além das telas.

Carlos André disse...

Hipnotizante

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.