sexta-feira, 10 de julho de 2009

criatura da noite

Lembro quando fixava os olhos na fresta da porta entreaberta do meu quarto, imaginando que a qualquer momento as coisas mais terríveis pudessem lentamente surgir pelo batente. Minhas noites infantis não eram diferentes das de outras crianças que começam a entender o mundo, algumas de suas complicações. A cada barulho noturno, cada estalo que a geladeira pontuava lá estava eu crendo que esses eram sinais da proximidade dos tais seres. Extraterrestre era algo que me arrepiava o juízo e todos os meus poucos pêlos... Havia uma moda televisiva na época de repetir os relatos de raptos e aparições, seguidos das descrições perfeitamente ilustradas: cabeça grande, corpo fino e branco, boca e nariz mínimos, (e a pior de todas as características) olhos negros, enormes e brilhantes. O Globo Repórter e o Fantástico não têm idéia de quantas mentes traumatizou com sua falta de assuntos e pautas mais dignas.
Fui inventando várias artimanhas para chamar a atenção dos meus pais, que não demoram a perceber que não havia nada nas minhas tosses secas além da falta de coragem de admitir o medo. Cheguei a temer as aparições de Nossa Senhora, que ela quisesse revelar os segredos do mundo pra mim. “Me libera Maria, me libera.. Eu não mereço!”. Rezava pedindo perdão a deus por isso, mas era medonha a imagem do rosto neutro, límpido, emanando luz e paz envoltas em um véu de cores pastel vindo em sua direção no meio das nuvens... Credo!
Foi aí que comecei a desconfiar que algo de estranho havia nisso tudo. Deparei-me com poucas alternativas: a loucura frustrante ou a invenção criativa... Acho que me alimentei de um pouco de cada. Desse hibridismo fui tomando gosto pela noite, achando outros barulhos e silêncios, percebendo que havia enormes possibilidades antes de fechar os olhos pra contabilidade caprina. Conversas demoradas, desenhos toscos, fitas VHS, livros, poesias caóticas, fones de ouvido. Acredito que me moldei principalmente através desse trovadorismo noturno, dessa hora melhor pra achar que tudo pode ser inventado... Sem medos!

4 comentários:

MeNina disse...

Eu tb morria de medo da noite. O meu maior medo era de espíritos... Meu Deus, só de pensar eu acendia a luz ou me enrolava encolhida debaixo do cobertor. Mas aí eu cresci, esqueci parcialmente os fantasmas e me tornei uma criatura noturna. Lindo texto, mon.

L. disse...

Viajei no tempo da memória de meus medos. Lindo texto, Ramon!

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Artur Silva Rios disse...

Nossa mente desde criança parece ser auto-pirraçável. A gente cria medo só para se ver em medo. É como se precisassemos ter autonomia para aprender a andar com os pensamentos também, não só com as pernas.