sábado, 2 de maio de 2009

"Deus, Deus"

Ele gritou "Deus" umas duas vezes no quintal... Alguns pássaros passaram como se perdidos por cima,"ali Deus", pensou então... Resolveu seguir a lógica e lançou mais dois chamados, mais agudos, e embolados em gargalhada (chamar Deus já fazia parte então de uma brincadeira que parecia dar certo)... Dessa vez nada aconteceu... Ainda com a cabeça pra cima esperou mais uns segundos até o pescoço cansar, baixou e foi descendo o olhar até encontrar o chão marrom de terra. Ali passavam formigas com o clássico pedaço de folha sobre as costas.Agachou curioso, e elas seguiram direção pros seus pés, como se entendidas da observação, mas logo se afastou ele com pequenos passos limitados pra trás..."Aí ó Deus de novo".
Acompanhou o caminho das pequenas criaturas agora de pé com certo receio. Sim havia mesmo razão sua mãe ao dizer, "chama por Deus minha filha", na sala de sua casa enquanto a moça choramingava... Agora como se quisesse ter certeza do seu poder, foi ao banheiro e disse baixinho entre as mãos, "Deus, Deus". A resposta veio da porta com a mãe questionando aos berros o seu trancafiamento... Ele saiu explicando "estou chamando Deus, achei duas vezes". A mãe arqueou sutilmente suas sobrancelhas, perturbada por dois segundos... Os seguintes foram recheados de outros berros, impulsionando o choro assustado do filho, que tomando a vez agora de arquear a sobrancelha, o bico, foi desengonçado obedecer à ordem materna de sentar no banco virado pra parede. Piscante, cochilou cansado de murmurar, e de susto voltou a si com o som da vassoura no quintal. As lágrimas já secas no rosto lhe vez lembrar da vizinha que chorava ali outro dia na sala. Não entendeu... Se quando choramos mandam chamar por Deus, também quando chamamos, choramos. Claro, não pensou com tamanha destreza, só não entendia... Bom era chamar e ver as coisas vindo, como se pra nos ajudar... Formigas, passarinhos... E cochichou ainda mais baixinho que no banheiro “Deus, Deusinho”, e ali bateu o olho na parede pálida que lhe cercava a visão...
E lá estava ela, vindo em sua direção.

4 comentários:

Anônimo disse...

o menino que chama por deus lá fora ainda não sabe que deus, deus mesmo, está por dentro e sob a pele, que é a própria textura epitelial e todos os órgãos grandes e pesados. e que passarinho, formiga e parede também. e todo o mundo, tudo que a gente vê, é a nossa visão somada à experiência de dentro... como se a fôrma da imagem pertencesse ao mundo de fora, mas o denso, o conteúdo, surgisse do bolo de dentro, de deus. avisa a ele, que chama por deus, que chamar com os olhos de fora é manter um caso eterno com o vento.

Cinemanaveia disse...

Meu caro,

Desde que te vi falar na 1º aula de Contemporanidade, de forma tão genuína, que estava estudando arte, porque arte é parte de você; e em seguida citar O narrador de Benjamin, pensei: Tenho que ser amiga desse menino.
Acertei na aposta.

Cinemanaveia disse...

Muito lindo seu texto!
Me lembrou o contos de Clarice Lspector.

Leo Coutinho disse...

Quantas imagens, ritmo, poesia. Um menino que minutos depois secava as lágrimas, minutos antes soluçava alegria. Quantas imagens ritmo e poesia. Um grito, dois gritos e o fantástico subitamente se mostra. Amostra de pequenos milagres profanos, causos menores de uma vida que não cansa.

Quanta imagem, rito e alegoria.