sexta-feira, 4 de abril de 2014

bebemos da mesma água

Agora a distância entre eles parecia segura. O choro dela baixou, mas a mão continuou cobrindo o ferimento. De um lado a outro do quintal sete minutos de murmúrios. Foi até a pia olhando aqueles pequenos pontos de sangue na pele, um leve ardor que parecia maior a cada revisão. A água não caiu. As lágrimas voltaram, como se a mordida tivesse se repetido. Água só no poço, atrás da casa, depois do campo, onde ela sempre teve medo de ir sozinha. Soluços, enjoo, raiva e preguiça. Sentou de novo no batente, mas os olhos não se encontraram mais. Ofegante e nervoso ele parecia forçar uma aparência de estátua. 
Mesmo com tantas rabugices e caprichos ela nunca esperou aquela reação dele. A menina preferiu o rancor a covardia, relembrando as situações anteriores que lhe confirmavam tal escolha. E sob aquele sol forte de todos os dias moveu as pernas em marcha até o poço. O sangue havia secado quando a água surgiu escura, tremulando seu rosto agoniado. Enfiou a cabeça na água repentinamente e se manteve submersa o máximo que pode. Ressurgiu 16 anos mais velha e com cabelos curtos. Sem perceber a estranha transformação, jogou água sobre os arranhões que logo se tornaram leves cicatrizes. Agora Mulher acalmou os ânimos, aliviou os incômodos e sem ter pra onde fugir retornou. Era ele quem deveria partir. Ele e seus impulsos.  
Tacos de água iam se soltando do balde pelo caminho de volta. E desses pequenos pedaços de chão molhado árvores logo se esticariam, imponentes, indiferentes a toda essa história. Ele voltou a rondar o quintal, resoluto em sua inocência, cheirando e investigando aqueles cantos tão conhecidos. Ao vê-la chegar a recebeu com o mesmo entusiamo feito de pequenos saltos, seguindo os passos, esquecido de seu ataque anterior.  Ela o censurou com a mão em riste e um grito firme. O medo agora parecia ganhar do rancor. Cautelosa distribuiu boa parte da água pras plantas que mais gostava, outro tanto sobre o rol da casa e um resto pra um pote onde ele pudesse se abastecer. Minutos depois dos goles seu caminhar ganhou um ritmo peculiar, cambaleante, meio jocoso. Do batente da porta ela quase sorriu observando a cena, crendo naquilo como um pequeno castigo.
Seguiram semanas de desproporção entre eles,  tendo a janela como único ponto de contato. Ele a esperava para caminhada do fim da tarde, mas só recebia um braço esticado com comida. A insistência dele mantinha a resistência dela. Método esse que não era mera indiferença, ela só tentava evitar aquele olhar. Houve o dia em que ela percebeu que o melhor seria partir, e a casa, tentando ajudar, ganhou goteiras no quarto, rachaduras na cozinha, marimbondos avermelhados pelo banheiro. Ela queria ir, mas também queria ficar, e sofreu, lutou contra si, contra todas as intemperes, e confusa, quase louca, abriu o portão com um grupo de roupas entre os braços. A casa lhe expeliu. Antes de correr vislumbrou seu entorno e o viu baldio, cegado por tanto rebuliço. Deu três voltas e meia pelo quintal e chegou até o dorso dele com a mão tremida. Um afago de despedida e um vento só sobre todos nós. Tal cena acaba sendo maior na minha cabeça do que realmente foi. O tempo dilatado, meu rosto murcho, nossa vontade de deixá-la ir. Eu, o cão e as plantas, chorando hora ou outra por sua ausência. Agora tínhamos que nos esforçar cumprindo um silencioso compromisso: fechar nosso maldito olhar intruso sobre ela. E nessa dolorosa ignorância pudemos plantar, correr, subir no telhado tendo como última imagem uma mulher só e um largo caminho.
Da terra brotou Sosa - filha dele - que nos deu ânimo outra vez. A casa se acalmou e houve risos. Em suas aventuras Sosa descobriu riscada sob o cimento uma frase no fundo da casa. "Por você hoje é dia de subverter o sol e encantar a lua", algo assim, não me recordo bem... Sosa quis saber pra quem eu havia escrito aquele dizer.  Mesmo velho e calado tive que lhe explicar tudo, inclusive que parte daquela água do poço havia respingado na minha barba. Ao final Sosa disse que queria conhecê-la e eu calei, vendo seu cochilo manso e sem rumo. 

Soube que um dia ela retornou bonita e sem medos. 
- Houve tempo de reconciliação antes que o cão morresse - as árvores disseram.