sábado, 28 de fevereiro de 2015

em dois filmes sobre sacrifício e amor

Tomei um banho rápido, me vesti com desleixo e peguei um táxi bandeira dois para ver "Boyhood". Duas horas e porrada depois percebi que poderia ver o filme na tela do computador que não faria qualquer diferença. Limpinho e gutiguti, seria um passatempo de um sábado preguiçoso. Aí acabei vendo:

O filme menos prestigiado do prestigiado Tarantino é também o mais sutil, com menos tiros, sangue e gritaria. Em Jackie Brown, como na maioria de seus filmes, é o diálogo que comanda, que desenrola e desenvolve a bagaceira. Ele rebola muito pra contar uma quase história de amor entre uma aeromoça de meia idade e um tiozão estilo velho oeste. Ambos são o meio, a corda, as mulas do sistema criminal americano. É preciso ter polícia, trapaças, caras idiotas e algum sangue, mas tudo isso é só floreio pra mostrar um casal que nunca realmente acontece, que vai embora sem realizar seus carinhos e afagos. Os olhos brilham, os sorrisos comparecem, mas... Simplesmente político por ser um filme de uma Mulher negra que bota pra lascar em cima de uns otários. O último deles parece até legal, mas é um tiozinho que não consegue se desatar da velha mesma vida de fazer a mesma coisa de sempre. Ele quer, mas é incapaz. Acaba borrado e sem foco na própria angústia. Ela é livre, tem cabelos esvoaçantes e mesmo com dor e melancolia entende a necessidade da solitária caminhada, e vai balbuciando a canção no final do filme, dentro do carro, como prova de que vai sair por aí e botar pra lascar em cima de outros: "I was the third brother of five, doing whatever I had to do to survive/ I'm not saying what I did was alright/ Trying to break out of the ghetto was a day to day fight". Jackie sabe quanta merda aguentou, mas não olha pra trás, segue e que se foda esse papo de se sacrificar por amor.  Ela sacrifica o amor e vai. 

Ata-me é soltar deliberadamente os cachorros da paixão desvairada. Sem contornos, sem pena. O lance é amarrar e amar. Direto. Tudo em cores berrantes e sem juízo algum. O desvairado Almodóvar escancara sua versão das drogas. Viciados, saímos as ruas atrás dos alívios instantâneos, as pequenas curas e ilusões pras nossas dores de coração, dente, cotovelo. E se amar no cristianismo é basicamente sacrifício então vamos nessa. Dor de corpo inteiro, da cruz. Não atoa o tal filme começa com imagens duplicadas do sofrido Jesus e da emaculada Nossa Senhora. Olhares perdidos e sedutores te mandando AMAR, AMOR, AMOR... E isso tortura, prende e machuca. Por isso uma das cenas mais bonitas dos anos oitenta talvez seja quando Marina pede com muita consciência e calma para que Ricky a prenda na cama. É o sagrado coração de Maria? Almodóvar joga na nossa cara nosso humilde pedido de auto crucificação, descarada e retumbante contradição. . Há claro a cena crucial e kitsch sendo gravada dentro do filme que pode passar despercebida, mas é fundamental pra entender a ideia da parada: vem um amor antigo, forte e transfigurado, mas ela o enforca com a sagacidade de um gato chinês. Chega de apego porra! Mas aí vem o final é feliz, dizem... O casal se une e a música cantada dentro do carro de modo feliz e juvenil diz: "Resistiré, para seguir viviendo/ Soportaré los golpes y jamás me rendiré". Como típicos perturbados, loucos e drogados acreditaremos que tudo acabará bem e eles irão ter dois, três ou quatro filhos, irão pra igreja aos domingos tomando rivotril pra dormir.


Ps:Poderia falar de Bufallo 66 do egoico Vicent Gallo, mas chega de finais felizes por hoje.

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