segunda-feira, 3 de junho de 2013

Um par de meias pretas para o sorteado


Desde pequeno apreciava observar a marcha das formigas sobre a escada de madeira da casa onde nasceu. Presentava os insetos com pedaços de mortadela, imaginando o quanto eles vibravam - ao seu modo mínimo - com a descoberta alimentícia, capaz de durar alguns dias. As formigas continuaram pra lá e pra cá, mas agora velho não tinha os mesmos olhos da infância. Lembrava da sua vida numa cadeira de plástico na frente da casa onde iria morrer, contando carros, interruptos. Contemplava quadros abertos, sem closes. A estrada era sua televisão.      

Naquela manhã em que o observei foi diferente. Espichava no muro cinza um líquido que guardava no quarto dos fundos. Repetia que tinha que acabar com a praga dos cascudos fedorentos. Acordou cinco vezes na noite anterior, resmungava do odor espalhado no quarto. Achou um pequeno prazer contemplar os cascudos amontoados, saindo das frestas do muro, atordoados, fugindo do veneno que já os tinha dominado. Não tinham pra onde ir. Logo, o pequeno quintal se converteu numa festa fúnebre, com folhas remexidas pela coreografia descompassada dos bichos.  

Deitou na cama querendo crer que seu cansaço era bem justificado. Não pude ver tudo, mas tardou a dormir, inquieto. Rememorava as patas pretas remexendo no vazio. Teria pensado sobre o som da morte que não conseguimos ouvir? Quem sabe... Mas foi inevitável não imaginar a si próprio morrendo na folhagem, sendo coberto por vermes e larvas vibrando com tanta carne sob o solo seco. Da noite mal dormida, entre o asco e a possibilidade iminente de virar pó, lembrou do conselho imperativo que a vizinha havia lhe dado ao saber que ele não tinha uma televisão em casa. "Faz uma rifa rapaz". 

No armarinho de Alceu comprou um pedaço de cartolina com vários nomes escritos em quadradinhos. Começou a parar carros na estrada. Alguns motoristas eram convencidos pelo narrativa singela do velho, mesmo sabendo nunca iriam receber o prêmio em questão. Compravam uma sorte esquecida. "Durval", "Lurdes", "Cristóvão". Os nomes escolhidos pelos motoristas da estrada iam pro chão do quintal. Era o único cemitério de bichos das redondezas. Provavelmente o velho achasse mais digno batizar seus assassinados. 

O que se sabe é que o velho conseguiu comprar a televisão e esqueceu os carros, os bichos e a vizinha.

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