quarta-feira, 7 de março de 2012

Morte aos humanos, morte! (Parte I)

Volto do exílio e vejo coelhos brancos estampados em embalagens de papel higiênico. Não resisti aos olhos vermelhos e dúbios do camuflado garoto propaganda. Coelhos brancos parecem papel higiênico, mas seus olhos são irônicos e parecem rir dos que ficam minutos escolhendo a marca que mais se aproxima da sua personalidade na sessão de higiene pessoal. É, talvez a propaganda perdesse muito se fizesse sentido.  O playground do prédio ao lado anda muito vazio. Tiro o pó cinza da janela minúscula do banheiro dos fundos com papel higiênico. O velho que fazia cooper em círculos, agora dá dois passos a cada quatro segundos com os braços atados aos de uma jovem que deve querer fugir, comparando sempre o ritmo da caminhada com a vida do seu coração. Não, ela não foi abandonada. 
Hermila era uma fiel frequentadora da janela minúscula do meu banheiro dos fundos. Todas as tardes ela me provocava as mais clássicas dúvidas e mistérios sobre a existência, só por deixar-se exposta ao sol, fumando seguidos cigarros. Era uma imagem tão forte em sua enigmática simplicidade. Vida-intervalo. De cabelo, roupa e cadeira branca sentada em um baldio playground, conversando com o próprio pensamento. Olhos sem destino e convincentes. Dedo no queixo olhando pro nada como se enquadrada em um filme romeno de 1959. Sempre deletava as crianças que ocasionalmente apareciam correndo. O quanto ela era  mais que aquela cena? Tinha razão, não importava do quê. Inventei sua estória a partir da vigésima terceira bituca amassada no parapeito: enfermeira aposentada que fumava somente nos intervalos do plantão num pátio externo do hospital. Só a fumaça esparramada no ar aliviava a dor de enxergar a dor humana, todos os dias. Depois da aposentadoria a vida acabou num intervalo de plantão permanente. Desde os 16 anos compra a mesma marca de cigarros sem coelhos brancos estampados na embalagem. Perdeu a família em um acidente e só lhe restou dias pra contar as folhas das árvores, alisar a samambaia, catatônica com aquela beleza mínima, crescida, explodindo por atenção quando todos os humanos que gostamos morrem. Falaria  com plantas se soubesse. Um disco de uma banda antiga era o que discutia um velho conhecido, que assustado com minha presença na cidade, gritou meu nome da sua esquina preferida. Mudei o assunto.

- Monóxido de carbono, óxidos de nitrogênio... Essas coisas. 
- Você a conhecia?
- Pegamos o mesmo elevador algumas vezes.
- O que ela fazia?
- Dona de um Pet Shop, acho. 
- ... (Dedo coçando o queixo)
- Passa aí em casa pra eu te mostrar a capa do disco remasterizado ano passado. 
- Ok valeu. 

Que a vida já estava lhe enchendo o saco eu não duvidava, mas vendedora de ração com  vitaminas e aminoácidos que melhoram a textura da pelagem,  coleirinhas coloridas e todo esse arsenal de coisas que animais não precisam?! Não, jamais desconfiaria. Hermila, a suicida dona de pet shop. Nem mesmo depois da centésima segunda bituca de cigarro amassada no parapeito ia conseguir imaginar. É sempre o pior caminho mudar de assunto com antigos conhecidos com fofocas sobre a vizinhança. Eles matam a invenção. Quase esqueci a estória da enfermeira depois desse papo com Elton. Ele continua falando demais sobre os mortos, principalmente desses que escolhem morrer, como Hermila, como o vocalista da banda que há tempos havia esquecido na minha estante entre outros discos. Espero que ninguém esteja me observando. O carro de Hermila não tinha catalisador. Mangueira, janelas bem fechadas, asfixia.  Carros sempre matam pessoas, mesmo estáticos como o coelho que a qualquer momento vai fugir dessa embalagem plástica, rindo, cético. 

3 comentários:

Deise disse...

eu vi esse filme que tu fez =)

Marcus disse...

ah, os coelhos.

francisco disse...

ramon cortazariando...