segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Traz o demônio no corpo

(Por favor ler em voz alta e no escuro!)

afundando os pés entre as folhas secas
nosso irmão calava sua revolta
nosso irmão virava-se de costas

abrindo largos passos para um mundo de vícios velhos,
nosso irmão se perde como um confuso, um epiléptico... possesso!

e a sua virulência separa as mãos
sua virulência invade o nosso pão

nosso irmão traz o demônio no corpo

e a sua virulência separa o nosso pão
e sua virulência invade nossas mãos

impiedosamente
nosso irmão traz o demônio no corpo,
irmão,
traz o demônio no corpo, traz...

(Só assim Raduan poderá nos ouvir!)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

"cinema ta ficando um assunto sério demais..."

O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema – como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores e do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os personagens medrosos. Nesse País tudo é possível e por isso o filme pode explodir a qualquer momento.
Rogério Sganzerla (1968)

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Um elogio a subversão - Casamento silencioso

Há uma série de filmes que buscam denunciar as variadas formas de repressão que governos antidemocráticos imporam contra as sociedades, principalmente durante o século XX. A maioria desses filmes acabaram fazendo uso do gênero dramático, numa clara tentativa de se aproximar de uma realidade histórica. Em Casamento Silencioso, filme de estréia do diretor Horatiu Malaele, a idéia é seguir justamente pelo caminho inverso: uma comédia que se ergue em situações aparentemente absurdas e desconcertantes, sem perder o nível crítico de sua narrativa. No filme uma pequena comunidade no interior da Romênia acaba impedida de comemorar o casamento de um simpático casal de moradores, justamente pelo luto imposto pela morte do então ditador da União Soviética, Josef Stalin. É anunciado pelo oficial comunista no dia da cerimônia que por sete dias está proibida qualquer manifestação pública, seja risadas, casamentos ou funerais. Haveria situação mais absurda? É o que as cenas seguintes irão responder.
O filme acaba dividido principalmente através de uma lógica sonora contrastante. Enquanto o barulho domina boa parte do filme através da música, do sexo, das brigas e risadas exageradas, o silêncio (quase) impera na comemoração do casamento, que acontece às escondidas das autoridades. É nessa cena que o filme consegue catalisar mais intensamente a sua força criativa, fazendo referência direta a arte circense e as chamadas comédias-pastelão. Se há no barulho a extrapolação da liberdade e das sensações, haverá no silêncio a capacidade de subversão e revolta contra a censura imposta pelo estado. Através desse excêntrico caso o filme acaba simbolizando toda uma época onde o comunismo foi estabelecido através do autoritário controle sociocultural, tema que tem dominado o recente e premiado cinema romeno, tendo como exemplos mais expressivos a também excelente comédia A leste de Bucareste, e o denso drama 4 meses, 3 semanas e 2 dias. Em Casamento Silencioso não faltam sátiras a esse comunismo vulgarizado, como no momento da tentativa de “culturalizar o povo” através do cinema, mesmo num vilarejo sem energia elétrica, ou no modo como partido é caricaturado. Tendo o início e o final do filme se passando no presente o diretor demonstra tentativa de problematizar essa história recente, refletindo sobre o modo que a contemporaneidade lida com suas memórias.
A hilariante fabulação da realidade que o filme propõe parece querer nos indicar que há possibilidade da felicidade sobrepor-se a ignorância megalomaníaca dos homens, mesmo que conquistada sutilmente através do olhar infantil e na ilimitada vontade de reinventar que a arte cinematográfica nos concede.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Sinal fechado

Mesmo que nunca percebêssemos as cenas da Baía ao entardecer, mesmo que todas as cenas seguissem até o último momento, que era a imagem da baía a partir duma janela, Isa observaria a rua; E mesmo que o som do trânsito aumentasse de intensidade, ouviríamos os passos, antes que ela soubesse que o mundo terminaria diante daquele silêncio. Mesmo que o mundo terminasse por aquela tarde esquecida, Isa continuaria a mesma doutras vezes. Quer fosse por esse silêncio duradouro, ninguém saberia que a cidade seguia em tom de azul desbotado: ninguém saberia daquele azul. Por mais que quiséssemos, nunca saberíamos de Isa nem desse dia. E assim, como em tantas vezes, poderíamos ter dito que tudo era somente aquele entardecer. Pela avenida, o semáforo se perdia novamente pelo vermelho. E antes que todos soubessem daquele dia, dos carros bem como do sinal, poderíamos ter dito que a cidade terminaria pelo silêncio afundado de mais um entardecer. Sim, Poderíamos ter dito. Entretanto, não havia nada a ser dito além dos passos apressados das crianças pela praça. Não sem antes a perdermos de vista: já não ouvíamos as buzinas dos carros. Por mais que tudo nos silenciasse, as imagens da Baía correriam como num filme, sem que distinguíssemos qualquer um dos personagens: a janela, as fotos, o espelho e as imagens dos amantes em mais um fim de tarde. Mesmo que a cidade nunca silenciasse, nunca nos esqueceríamos daquela última imagem. Então, novamente, veríamos as fotos pela parede da sala, a imagem de Isa diante do espelho e as imagens dos amantes pela cama. Mesmo que nunca a amássemos, ainda assim, haveria aquela última imagem: os resquícios de mais um dia terminado. Então, por um instante, poderia nunca ter existido nenhuma imagem, nem o corpo de Isa coberto de um negrume parco, como numa tela de cinema escurecida, a espera de que tudo novamente terminasse.

por:
Francisco Gabriel Rego