
Espero na fila, o cheiro é forte, as glândulas salivares produzem enquanto imagino as primeiras mordidas na iguaria de feijão banhada em dendê... Enquanto isso eu ia observando a baiana, viajando naqueles signos, o acarajé crocante sendo cortado, o gringo vermelho se ardendo com a pimenta... Num lapso de pensamento quase trivial percebi algo incrível: “Eu sou baiano... Rapaz eu sou baiano... Que onda...”. Era eu ali um simples baiano babando de vontade por um acarajé! O que mais? O que mais me fazia pertencer a essa complexa terra? Quais são meus adereços Caymmi?
Nessa crise identitária fui obrigado a lembrar de personagens que me ajudassem a entender minha baianidade, ou a falta dela. ACM, Ladeira da montanha, BaVi, Axé Ylê Oia Iá, Castro Alves, o busú caro... Não, nenhum desses patrimônios parecia forte o suficiente para o início dessa análise... Chegou minha vez, peguei o acarajé, “no pratinho é mais caro senhor”, disse aquela mulher vestida de branco com sorriso negro, que me lembrou quase instantaneamente uma outra baiana, muito particular. Miranda, Carmen Miranda. Num primeiro momento fiquei surpreso com aquele nome emanando e piscando em minha cabeça. Ela pra mim sempre foi lembrada como um fantasma que assolava tais idéias baiantificantes. Um personagem aberrante que vendia uma idéia de Brasil, da Bahia pra Hollywood, e que assim só atrapalharia esse debate. Mas não me conformei, havia algo naquela figura branca, portuguesa, que não sabia sambar, mas que carregava esse enorme poder referencial. Afinal olhar pra baiana de 2009 no Rio Vermelho e lembrar dela é realmente intrigante.
A imagem da moça de boca e olhos saltitantes e com frutas na cabeça nos é tão óbvia e familiar, ao mesmo tempo tão cercada de estigmas que me impedia de ir além desses balangandãs preconceituosos. Engraçado como todo mundo acha a Piaf linda, sua vida e voz, mas ninguém concede esse olhar cuidadoso pro nosso quintal. Percebi que não havia melhor caminho pra entender essa tal identidade se não a partir da desmistificação dos mais clássicos e contraditórios expoentes.
Reinventar e personificar o mundo aos seus olhos é o que dá a cada artista sua graça, e foi essa audaciosa coragem artística que Carmen, com a ajuda de Caymmi, conseguiu construir, mitificando uma personagem real do cotidiano da cidade, sem se preocupar com uma fidelidade didática da realidade. Quando vi o documentário de Helena Solberg, “Banana is my business” percebi elementos riquíssimos que cercavam a trajetória da tal mulher das bananas, sua incrível e malemolente performance. O lendário “jeitinho brasileiro” estava ali encaixotado, exportado, exótico do jeito que os gringos gostavam e gostam. Mas nesse processo de descoberta da notável pequena percebi o quanto aquela imagem caricatural, antes característica do personagem de Carmen, tornou-se um modelo que Hollywood ajudou a promover, e principalmente engessar.
Enquanto simples baiano, e claro um pouco preguiçoso, engoli essa idéia de que aquela tal Carmen Miranda era vazia de maiores significados, como se apenas a análise da realidade crua pudesse dar conta do nosso Ser Baiano e Brasileiro. Claro que não tenho a pretensão em definir essa equação, mas todos esses meus devaneios de alguma maneira me ajudam em minha procura por raízes referenciais enquanto sujeito que aprecia acarajé, mas que também gosta de Rock Inglês, ao mesmo tempo que não sabe quem está na frente do campeonato baiano, mas que vive tanta coisa bonita que há por aqui, mesmo com tantos problemas...
Sou, somos! Que onda Carmen...