A
cidade estava de novo moldada pelo aço febril do sol: a curva das
coisas, o modo que as pessoas andavam se esbarrando nos barulhos, nas
disputas, na simples tentativa de atravessar de lado nas calçadas
abarrotadas. Competiam entre si e o calor, expandindo os corpos com
aquela velha e ordinária tentativa de existir de um modo menos
desconfortável. Depois de ler três vezes a mesma frase acabei
compreendendo melhor o absurdo das palavras, daquelas observações
banais. “Apimente a sua relação”. Um letreiro publicitário em
vermelho alardeava um curso de pompoarismo revolucionário. Ri de
canto. O homem perto do sinal estava concentrado, com a cabeça
curvada em direção ao meio das pernas, sujando de mijo um muro com
um grafite colorido com outra oração déjà vu : “Penso, logo
stencil”. Fiquei imaginando aquelas mulheres em uma sala com ar
condicionado barulhento, se observando, pensando na elasticidade
vaginal da colega da esquerda. Antes de sair o homem ainda cuspiu no
chão, trocando de membro, atendeu o celular. Como
deformar uma coisa deformada? A arte se contorce, dolorosa.
Será que o comando mental sobre o músculo pubococcígeo, nos
músculos circunvaginais e nos grandes lábios da vulva ajudam mesmo?
Concentrei, saí da cena, lembrei: Foi
toda esticada que a mão dela resolveu pousar sobre minhas costas
úmidas... meio flor, meio radar… era querer saber demais de minhas
excitações sudoríparas, mas rimos, cúmplices, sem saber muito
porquê. Minha intimidade convertida em suor, explícito, confundindo
a beleza de sentir poros dormentes com
a buzina atroz que me jogava de novo naquela luz exagerada, que
expulsava e tragava pro mesmo lugar, mesmo percurso. De qualquer
sorte absorvi – nutrido – melhor o redor, mas querendo chuva,
chuva sem derrubar a casa de ninguém, sem dar medo pra ninguém, mas
desejando mais a forma molhada, fluída e refletida das coisas. Eu
era ali um grande lábio desestimulado, cansado da mesma posição na
hora do sexo besta, cotidiano. A cidade era aquele mijo secando no
sol. Resgatar o escuro, tateando a memória e deformando o que deus
criou era o único modo de vencer de novo aquele percurso dormente.
Ps:
Em homenagem ao ônibus Barra 3
4 comentários:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma. Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo.
Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall.
Agora é só puxar o alarme do silêncio que saio por
aí a desformar.
BARROS, Manoel.
a arte e a tela se contorcem e o que aciona um sentido no outro é mesmo uma forma em desconstrução...
gostei muito desse texto e quando leio um bucadinho mais, encontro (ou acho)o sudoríparo que sái nas bordas do poros minúsculos...
gracias chico!
Acabo de perceber que não me lembro da última vez em que olhei para um outdoor.
Tenho interagido muito com cães. Tento fazer com que eles me percebam. Às vezes sinto inveja deles.
É preciso transver como artista e ver como cães.
Essas cidades é sempre um overdose de coisas.
Mas até que ponto não é nós a dose-over de toda essa coisa.
Quando estava lendo seu texto fiquei pensando na palavra “game over”
Daí, fiz esse trocadilho com dose-over...over-dose....é dose.
“Penso, logo stencil”.
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