quinta-feira, 28 de abril de 2011

Tio Boonmee, que pode duplicar a experiência do visível

O filme desfocou umas três vezes, a luz vazou da tela, mas foi engraçado como esses pequenos defeitos de projeção contribuíram para que os sentidos simbólicos de "Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas" ganhassem ainda mais campo e profundidade. Depois dos primeiros trinta minutos olhei pra cima, busquei o feixe de luz do projetor, o segui até a tela como se desse conta da simplicidade daquele processo pela primeira vez. Olhei ao redor, a sala de cinema quase cheia e eu no meio de dois casais, que eventualmente sussurravam piadas e comentários sobre um filme que eles julgavam por dois aspectos que, por excelência, deveriam ser secundários: a palma de ouro em Cannes e as cinco estrelas do jornal. "Como é que pode?! Esse povo ta doido...", disse um deles rindo, provavelmente se referindo ao júri que premiou o filme e ao crítico que pontuou as estrelinhas. Essa revolta, aparentemente ingênua, acabou sendo bastante pertinente pra aquele momento, no meio de um filme que questiona com tanta eficiência nossa crença cinematográfica, e mais que isso, nosso encantamento sobre as imagens, o que enxergamos ou o que inventamos sobre nós em sonhos, na morte, no futuro. Esferas de realidade construídas internamente, antes de tudo, através de cenas, sequências e planos. Tio Boonmee está cercado dessas janelas, se abrindo literalmente como pontes pra ver além (pro além) do nosso conforto cético, condicionado ao ritmo frenético da informação. Não à toa os personagens do filme se deslocam, logo no início, da cidade pra uma fazenda distante, calma e cercada por uma densa floresta que abriga sombras, almas e seres jamais desprendidos de suas responsabilidades e memórias. Guiado por esses princípios o filme potencializa esses lugares da ação, concedendo a geografia do “primitivo” (montanhas, florestas e cavernas) uma consagração espiritual, onde os vínculos e reencontros são concretizados, mais do que nos reconhecidos espaços da fé: “o céu é superestimado, não há nada lá”, diz o fantasma da mulher do personagem, e logo, ao final, o monge troca seu templo sombrio por um quarto de hotel aconchegante, com vida. Assim também os animais carregam uma espiritualidade ciente e poderosa, capaz de estabelecer as mais diversas relações entre os mundos, sendo até mesmo agentes de contato e transformação entre eles. As fábulas contadas dentro filme reforçam tanto o inconformismo com as limitações e imperfeições físicas do mundo material, quanto o fascínio por outro modelo de existência. O macaco fantasma é um ser resultado desse encantamento por uma imagem mítica, onde só uma lente de câmera pôde registrar, lhe levando a ser o que buscava. Em outro momento a princesa se deixa envolver pela divindade que é a natureza graças a insatisfação com seu rosto, se entregando ao diálogo, a cópula com um bagre, elevando seu reflexo não mais do corpo, mas da alma, como era a que o rio lhe apresentava em sua margem no início da sequência. Em ambos os momentos é o questionamento da imagem seguido do ato sexual que definem a experiência da transformação, ou seja, elementos inerentes a nossa natureza. Essa importância animal como recurso mitológico e de contato com o mundo-além acaba espalhada por várias outras sequências através de insetos, vacas e macacos. Uma relação muito mais comum dentro da cultura oriental e africana.

Esses elementos estão alinhados com a busca por uma afirmação e reconciliação dos carmas, vidas passadas, mas com a própria história presente e com as pessoas que lhe deram sentido. O diretor Apichatpong Weerasethakul (tente repetir esse nome três vezes em voz alta) condicionou seu tempo narrativo a esse compromisso com a memória, espaço e eternidade em um tom extremamente consciente de sua projeção criadora de presenças, no fazer (re)enxergar em um mundo que não deixará de nos surpreender justamente pelo que cremos e duvidamos... Esse encontro entre as possibilidades (visível/invisível, carne/alma) na mesa de jantar parece o mais conciso ponto pra essa metáfora da presença, do milagre da luz, estabelecido através das duas cadeiras vazias à espera dos visitantes. Há uma serenidade comovente no personagem-título com seu modo de reagir ao aparecimento do espírito da mulher e do filho metamorfoseado em macaco fantasma. A cena provocou riso em meus companheiros de sessão, mas estávamos (rindo ou não) diante daquilo que se espera do cinema enquanto arma motivadora de encantamento, no sentido mais simples da expressão. Se a câmera trépida e uma lanterna podem nos guiar por uma gruta enquanto ouvimos o sonho do Tio Boonmee à beira morte, é porque nos entregamos a essa a crença de alterar a ordem do bruto do mesmo modo que a princesa ao rio, o tio a caverna, o homem a imagem que fotografou. Por isso que talvez, no início da sessão, quase involuntariamente segui o caminho da linha iluminada até a tela, numa tentativa de duplicar a experiência, enxergando algo mais que três pessoas vendo televisão (lá) e outras dezenas, ao meu redor, vendo um filme qualquer. "Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas" é um cinema ritual, holístico, de eterno retorno.

Luz do sol

Que a folha traga e traduz

Em ver denovo

Em folha, em graça

Em vida, em força, em luz...

C.Veloso


2 comentários:

Adriana Dil disse...

Gosto muito de tuas viVências cinematoGráficas. Teu olhar encanta e lê-lo é experiência além do visível. Eu ñ presenciei a obra fílmica, mas cada palavra tua foi um convite.

Carlene Fontoura disse...

Teu texto me encantou mais do que o próprio filme. Não que "Tio Boonmee" seja considerado menor, mas ainda não tenho o que dizer sobre. E, por isso, apoio-me em suas palavras para entendê-lo e admirá-lo. [Plic!]