Cuidado, existem coisas que desaparecem! Sim, simplesmente somem sem deixar qualquer pista, restando apenas a amedrontadora sensação de estar à mercê dessa misteriosa força engolidora de matéria. E não adianta buscar maiores estratégias investigativas. Onde foi mesmo que abri minha mochila descuidadosamente pela última vez como se estivesse dopado ou em um transe letárgico? Isso talvez só retarde o processo de desapego que teremos que exercitar sempre, seja com uma caneta-calendário, seja com uma das suas cuecas preferidas, seja com o Salvadorcard... Ah Salvadorcard, esse indispensável objeto que representa toda miserabilidade estudantil, acadêmica, humana soteropolitanamente humana. Sem ele, muitos teriam que escolher entre comer e se locomover, estas tão básicas e primárias necessidades humanas possíveis ali, em um mesmo pedaço de plástico de 8 cm.
Por um tempo temia assaltos que subtraíssem o bendito cartão, ou quem sabe uma colisão do ônibus com uma Kombi 82 justamente enquanto passava na catraca, impulsionando assim o cartão dos meus dedos rapidamente via janela, para nunca mais. Perder era a última possibilidade cogitada... O ostentava desde 2004, o conservava, mesmo encardido, com uma foto tosca, menor, riscada por milhares quilômetros de aventuras urbanas. Um dia desses ele sumiu. Parei na rua com uma fugaz sensação de ausência, não, não era fome... vasculhei-me, a mochila. Voltei, refiz os passos olhando pro chão fétido de uma ordinária noite de terça-feira com os olhos cada vez maiores, cada vez menos discretos, desconsertados, sendo aos poucos tomados por um tom de escuridão que só a lamentável necessidade de aceitar fatos inconvenientes podem conceder. Ele tinha ido, e mesmo depois desses quase seis anos de companheirismo não me deixou nem um adeus, ou melhor, que se perdesse com um pouco mais de emoção, pra que pelo menos eu pudesse contar aos risos em uma roda de amigos que sabem rir das próprias pequenas desgraças. Bloqueio, agendamento, pagamento. O processo é lento, dura neurônios e dias de paciência, enquanto a cada saída, a cada ônibus, a humilhante entrada no coletivo sem encostar o cartão naquela maquininha (bip), juntando os trocados, miúdos e moedas pra pagar o cobrador. O dia da forja da segunda via chega e em pouco mais de duas horas uma nova foto, agora maior e estranhamente comprida estampa um novo cartão, que por uns instantes até nos convence de que foi até melhor ter feito outro. Duas semanas depois, de novo! Cadê?? Tava aqui!! Mais uma vez o mesmo vácuo satânico o captura, agora de forma ainda mais sorrateira, absurda, angustiante, revoltante, sem graça nenhuma. Impossível! Palavrões gritados internamente contrastam com uma externa feição tipo Forrest-Gump. O mesmo foi com o celular. Tinha um aparelho que já quase em processo de tombamento como patrimônio material foi trocado por um modelo novo, contendo todas as teclas, sons, cores. Um mês e meio depois: sumiu Brasil! ( ) Atônito, pensei nos tantos outros absurdos que nos cercam, e como aqueles sumiços eram apenas uma amostra grátis do quanto você não sabe absolutamente nada a respeito do inexplicável. Senti um vazio existencial, não por ter perdido uma coisa, mas por vislumbrar minimamente o descontrole do mundo em escala menor, desmanchando a ilusão de segurança na qual aprendemos a se envolver. Nessa profusão de pensamentos bandidos, por dois segundos, senti como se uma grande parcela do meu todo fosse feitas de equívocos... eu como descuido de acasos caóticos.
Um, dois.
Depois de algumas analises tenho chegado à conclusão que tenho certa dificuldade em lidar com novos (ou bastante velhos) objetos cotidianos, como se minha mochila os expelisse, se achando um minúsculo museu ambulante de simples pertences, que pode julgar o que fica, o que vai. Talvez seja uma revolta instintiva, animal, de auto sabotagem, revoltada contra essas burocracias que nos dizem como e pra onde ir.
Ou será que toda essa tola dramaticidade nos surge quando não temos muito como explicar vacilos próprios?! Pensando bem, perder coisas até que ajuda a nos manter num certo eixo (o que não se aplica mais ao salvadorcard, claro), nos reconectando as falibilidades, mais através dessas trivialidades, do que com as chatices realmente dolorosas.
Significados, histórias, experiências, como os dedos, são mais difíceis de se descolar. A conta é simples e acho que o ganho vem sendo maior. Ufa!
(Tinha uma conclusão super construtiva, mas a idéia me fugiu agora).
Por um tempo temia assaltos que subtraíssem o bendito cartão, ou quem sabe uma colisão do ônibus com uma Kombi 82 justamente enquanto passava na catraca, impulsionando assim o cartão dos meus dedos rapidamente via janela, para nunca mais. Perder era a última possibilidade cogitada... O ostentava desde 2004, o conservava, mesmo encardido, com uma foto tosca, menor, riscada por milhares quilômetros de aventuras urbanas. Um dia desses ele sumiu. Parei na rua com uma fugaz sensação de ausência, não, não era fome... vasculhei-me, a mochila. Voltei, refiz os passos olhando pro chão fétido de uma ordinária noite de terça-feira com os olhos cada vez maiores, cada vez menos discretos, desconsertados, sendo aos poucos tomados por um tom de escuridão que só a lamentável necessidade de aceitar fatos inconvenientes podem conceder. Ele tinha ido, e mesmo depois desses quase seis anos de companheirismo não me deixou nem um adeus, ou melhor, que se perdesse com um pouco mais de emoção, pra que pelo menos eu pudesse contar aos risos em uma roda de amigos que sabem rir das próprias pequenas desgraças. Bloqueio, agendamento, pagamento. O processo é lento, dura neurônios e dias de paciência, enquanto a cada saída, a cada ônibus, a humilhante entrada no coletivo sem encostar o cartão naquela maquininha (bip), juntando os trocados, miúdos e moedas pra pagar o cobrador. O dia da forja da segunda via chega e em pouco mais de duas horas uma nova foto, agora maior e estranhamente comprida estampa um novo cartão, que por uns instantes até nos convence de que foi até melhor ter feito outro. Duas semanas depois, de novo! Cadê?? Tava aqui!! Mais uma vez o mesmo vácuo satânico o captura, agora de forma ainda mais sorrateira, absurda, angustiante, revoltante, sem graça nenhuma. Impossível! Palavrões gritados internamente contrastam com uma externa feição tipo Forrest-Gump. O mesmo foi com o celular. Tinha um aparelho que já quase em processo de tombamento como patrimônio material foi trocado por um modelo novo, contendo todas as teclas, sons, cores. Um mês e meio depois: sumiu Brasil! ( ) Atônito, pensei nos tantos outros absurdos que nos cercam, e como aqueles sumiços eram apenas uma amostra grátis do quanto você não sabe absolutamente nada a respeito do inexplicável. Senti um vazio existencial, não por ter perdido uma coisa, mas por vislumbrar minimamente o descontrole do mundo em escala menor, desmanchando a ilusão de segurança na qual aprendemos a se envolver. Nessa profusão de pensamentos bandidos, por dois segundos, senti como se uma grande parcela do meu todo fosse feitas de equívocos... eu como descuido de acasos caóticos.
Um, dois.
Depois de algumas analises tenho chegado à conclusão que tenho certa dificuldade em lidar com novos (ou bastante velhos) objetos cotidianos, como se minha mochila os expelisse, se achando um minúsculo museu ambulante de simples pertences, que pode julgar o que fica, o que vai. Talvez seja uma revolta instintiva, animal, de auto sabotagem, revoltada contra essas burocracias que nos dizem como e pra onde ir.
Ou será que toda essa tola dramaticidade nos surge quando não temos muito como explicar vacilos próprios?! Pensando bem, perder coisas até que ajuda a nos manter num certo eixo (o que não se aplica mais ao salvadorcard, claro), nos reconectando as falibilidades, mais através dessas trivialidades, do que com as chatices realmente dolorosas.
Significados, histórias, experiências, como os dedos, são mais difíceis de se descolar. A conta é simples e acho que o ganho vem sendo maior. Ufa!
(Tinha uma conclusão super construtiva, mas a idéia me fugiu agora).
9 comentários:
Vão-se os anéis... e os dedos que ficam perdem a função de apontar e pegar as coisas...perdidas, sem endereço, deslocadas para sempre da visão (da nossa).
A única explicação é que as coisas aprendem com os seus donos a fugir de casa e passear por terras longíquas. Talvem tenham ido a Machu Puchu, para cumprir o que tinha sido prometido. Nada mais justo do que a fuga de um cartão que paga passagens. Ele nasceu pra isso!
Por que perdemos coisas pelo caminho?! È fato que nada é realmente nosso. Até nosso corpo, que parece tão nosso a ponto de quase nunca nos dissociarmos dele, presente em quase todas as nossas aventuras nesse plano terrestre, está se deteriorando e um dia teremos que devolvê-lo a terra ou ao fogo, ao mar ao ar... Devolve-lo!
Imagina, então, o que nos sobra? Para quem acredita na imortalidade da alma, sabe que guardaremos o que apreendemos nela. Se assim for, gosto das pequenas coisas que não serão perdidas e nem roubadas: como a sensação de deitar a cabeça no colo de meu pai enquanto ele balançava as pernas; sentir o chão frio depois de ter chupado todos os bagaços dos limões das caipirinhas dos adultos, e, então, esperar o teto resolver parar de rodar; de um lindo pôr-do-sol assistido por olhos cheios de esperança...
Mas confesso que entendo esse sentimento desestabilizador da perda de algo como o Salvadorcard, sei que representa mais que um cartão velho com uma foto bizarra. Sempre tive medo de perder meu caderno de pensamentos, acho que seria uma sensação parecida a de se ter o irmão gêmeo siamês seqüestrado.
Ps: Gostei do “Sumiu Brasil” no meio do texto, achei meio "ramonesco", rs.
Vão-se os anéis e ficam os dedos, né? Ou vice-versa. Aliás, muitas vezes vão-se os dedos e ficam os anéis, marcados em algum lugar do corpo que já não se sabe direito onde é.
O texto me lembrou um poema de Elizabeth Bishop, que me mandaram uma vez:
Uma arte
Tradução de Horácio Costa
A arte de perder não tarda aprender;
tantas coisas parecem feitas com o molde
da perda que o perdê-las não traz desastre.
Perca algo a cada dia. Aceita o susto
de perder chaves, e a hora passada embalde.
A arte de perder não tarda aprender.
Pratica perder mais rápido mil coisas mais:
lugares, nomes, onde pensaste de férias
ir. Nenhuma perda trará desastre.
Perdi o relógio de minha mãe. A última,
ou a penúltima, de minhas casas queridas
foi-se. Não tarda aprender, a arte de perder.
Perdi duas cidades, eram deliciosas. E,
pior, alguns reinos que tive, dois rios, um
continente. Sinto sua falta, nenhum desastre.
- Mesmo perder-te a ti (a voz que ria, um ente
amado), mentir não posso. É evidente:
a arte de perder muito não tarda aprender,
embora a perda - escreva tudo! - lembre desastre.
"Senti um vazio existencial, não por ter perdido uma coisa, mas por vislumbrar minimamente o descontrole do mundo em escala menor, desmanchando a ilusão de segurança na qual aprendemos a se envolver."
Achei engraçado este trecho, pois veio a calhar justamente com o final de um livro que vou terminar a pouco de ler:
"A felicidade real sempre parece bastante sórdida em comparação com as supercompensações do sofrimento. E, por certo, a estabilidade não é nem de longe, tão espetacular como a instabilidade. E o fato de estar satisfeito nada tem da fascinação de uma boa luta contra a desgraça"
Talvez a função da perda beire justamente o simples fato de que o descontrole existe para que jamais tenhamos mesmo a falsa sensação de segurança. Se não houvessem as perdas, como poderíamos nos sentirmos tão plenos diante das conquistas?
brilhante post, como não é novidade!
Rapaz, seu texto me levou a Fernando Birri, e a aquela idéia dele (que discutíamos outro dia) que tudo ao nosso redor é cinema... No seu caso especificamente tudo dá um belo texto!
Já vivi essa angústia de perder algo, e não ter a mínima idéia de onde, nem quando foi. A sensação de impotência e de pequenez é absurdamente dolorosa ... Mas voltando a falar de narrativa, seu texto daria um descontraído e interessante curta. Veja a prévia do 1º tratamento...KKK
INT. SEQ. DE MONTAGEM- CASA DE RAMON -DIA
1 – Os olhos de um rapaz se abre.
2 – pés apressados correm para o banheiro.
3- Mãos “comuns sem maiores pretuberâncias ...) abrem chuveiro.
4 –Mãos fecham com muita pressa os botões de uma camisa.
5- Mãos entulham numa mochila surrada livros, papeis , celular...
6-Mãos abre a maçaneta de uma porta
CORTA PARA
EXT. CENTRO DE SALVADOR- RUA DA BARRA- DIA
Parado no centro da rua, rapaz (25), vasculha com insistência sua mochila.
RAPAZ (Voz OFF)Tem que estar aqui.
Caminha de um lado para outro da rua, olhando atento todo caminho
V.O
Caralho! onde foi parar esse troço?
CORTA PARA
INT.SEQ. DE MONTAGEM- SALVADORCARD- DIA.
Continuo?
a audácia é sua, deixe-a te levar... não a perca!
incrível como cada comentário aqui é outro texto que completa minhas idéias malucas. !!
Eu tenho uma extrema dificuldade de me adaptar ao novo... E é justamente esse novo que voce externou ai... O novo das pequenas coisas... Seja um sapato velho que eu uso, musica que eu nao me permito tirar do meu mp3, cartao de acesso pra porta de hotel que eu me hospedei (tem uns dois q tenho na minha carteira faz uns 4 anos), minha velha e boa mochila, q muitos ja me falaram pra jogar fora (porra nenhuma)...
É.. na vida a gente vai acumulando coisas insignificantes com muito significado, ou ate significantes que vai ganhando significado pela necessidade que ela supre... e em um dia comum, simplesmente, ela pode sumir, sem nenhuma vaga lembrança de onde ela tenha parado... paciência
(so nao va perder a porra desse salvador card de novo rpz.. paciência e salvador card tem limite)
Bom Mucho Bom !!! Também tem aquela fugaz possibilidade que tudo é Energia ...segundo a La Quântica ou desmaterialização, kkkk....Sério, isto serve pra perceber que nosso controle é zero ...hahahahahah
Hasta la vista Baby
Menino,
Seu texto me fez lembrar aquelas sensações efêmeras, mas profundas, que tivemos nas inúmeras paragens que conhecemos, andando pela América Latina. Toda vez que a Caravana deixava um hotel, olha lá nós todos, aliás, quase nós todos, achando que havíamos perdido a escova de dente, o sapato, a caneta. Mais uma parada; e eis que achávamos os itens desaparecidos. Será que as coisas também gostam de se esconder, para depois, sileciosamente aparecerem nos fazendo pensar o quanto são fundamentais na nossa existência? Se assim for, vamos mostrar (ainda em vida, rs...) o quanto são importantes, para que não sumam? Agora mesmo estou falando para o teclado o quanto ele me é válido, pois temo que eu vá comprar o pão, e, ao retornar, ele tenha tomado o caminho da rua.
Beijo coisificado,
Sarah
Ah, já viu um livro de Foucault que se chama "As palavras e as coisas"?
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