segunda-feira, 1 de março de 2010

O lugar constante de deslocamento

Uma parte do sol atravessou as pálpebras. Era quase meio dia e as curvas da estrada também interromperam o sono. Os joelhos de tão dobrados latejavam esperando uma nova posição, que já há horas era a mesma. As duas poltronas eram como um ninho que acolhia o corpo, o livro, caderno, caneta e câmera. Ao lado a pequena janela dividida entre a neutralidade vermelha da cortina e a vastidão da paisagem bucólica parecia remeter diretamente a uma outra partilha. Os sonhos vividos no instante anterior e a volta repentina pra realidade confundiram o rosto amassado. Reestabelecer contato... É essa a tarefa mais exigida diante de um anti-cotidiano. Tudo de novo diferente amanhã. Lidar com tanto é o maior dos exercícios, mesmo em uma posição inerte, calada, demasiadamente sóbria. Por um momento tudo passa de vez na cabeça, como o lá fora distorcido da janela. A caneta não estava fácil, mas foi buscada com insistência debaixo do banco. Era preciso riscar algo pra colocar de volta algum tipo de ordem em tudo aquilo. Não estava ficando bom, mas lá estava aquele livro pra salvar o momento raro de busca por organização interna. Algumas páginas viradas depois alguém por perto puxa um papo interessante, intorrompido apenas pelas fotos tiradas da montanha adiante. Música pra levitar para além do tempo/espaço, mas logo depois de oito faixas as pilhas descarregadas impedem maiores transcêndencias. De volta pra uma pessoa, conversa, risada. Quantas horas faltam pra chegar? O olhar se volta pra janela agora escura pela noite, que de tão vazia ajuda a deslocar o pensamento pra outra imagem: um chuveiro amaciando e aliviando o juízo. Todos no ônibus dormem, todos parecem sonhar com o mesmo chuveiro, cama, alívio. A luz acende repentina. Reestabelecimento da órbita pra reconhecer a bonita estranheza de mais um lugar. Parindo mais outro olhar no meio da rua da cidade. Chegando ao mesmo espaço do constante deslocamento. Amanheceu e eu não estou mais aqui...

5 comentários:

Unknown disse...

Pequenos detalhes, como mudar de cadeira no ônibus, podem fazer toda a diferença e modificar totalmente nosso ponto de vista sobre algumas coisas. Nada como uma redação espontânea e desprentesiosa para nos fazer perceber isso.
Encantado com sua sensibilidade e habilidade poética, espero me policiar para ser um leitor assíduo do subliterato.
Boa Pós-viagem para todos nós!

Alda disse...

Muito mágico.
Bjs

Urânio Coutinho disse...

A poesia de uma viagem encantada e cantada, com o olhar por dentro nos faz ver, por todos os ângulos ...Obrigado ...participei da viagem sem viajar.

Welber Mascarenhas disse...

Muito Bom!!
Parabéns Pelo Blog!!

sagaranas disse...

Acho fascinante como nada parece escapar ao seu olhar. Mesmo cansado, a minúcia, a poesia a sensibilidade continua ali, investigando tudo...li mais do que seu texto, li você, ali doado de corpo e alma num cansaço lindamente poético. Muito bonito, muito raro, bem você!