quinta-feira, 8 de setembro de 2011

quando a vida não é assim mesmo


O homem que abria a porta do banheiro em direção ao vaso sanitário não pensava sobre seu passado desenhado em formato de seta - habitual, corriqueiro - muito menos refletia sobre o sanduíche de salame que o fazia estar ali, com tamanho mal estar. Encostando lentamente suas pernas cobertas de pêlos sobre a auréola de plástico do vaso, buscava apenas aquela paz evacuadora, enquanto folheava uma revista quatro rodas que roubara dias antes na sala de espera do dentista. Mesmo concentrado nos mais variados acessórios dos carros mais novos, adentrou forçosamente passivo na conversa do vizinho ao telefone: "Quem? Quem morreu?", e depois da longa pausa: "é isso, a vida é assim mesmo. A família tá bem de dinheiro?". As frases passaram desapegadas num primeiro momento, como normalmente sucede em tais circunstâncias, mas logo, de um modo virulento e estranho, aquelas pequenas orações foram se alargando no pensamento, e o homem gradualmente foi ficando mais estático sobre seu pequeno trono de paz. Não mais que dois minutos depois, já tentava desembolar as palavras que chegavam aleatórias pelo basculante, sendo agora, como de costume são, apenas sons distantes do vizinho ao lado. As palavras pregam peças, as vezes não as queremos, mas elas nos invadem, e quando às buscamos, famintos, tornam-se sussurros banais. Dessa curiosidade peculiar a orelha do homem arrepiou subitamente. Ele queria ouvir um nome, este que serviria de pretexto pra pensar sobre a pessoa... Pessoa que o fez arquear as sobrancelhas, depois de tempos sem fazer uso delas de modo realmente expressivo. Agora de pé, nu da metade do corpo pra baixo, tendo a tal revista ainda atada a mão direita, passou a outra mão (livre) sobre a testa levemente suada. Nos minutos seguintes se dedicou a ouvir o que fosse, somente. Uma torneira assobiando água de um lado, uns berros infantis do outro, e todos os veículos - com ou sem acessórios, novos ou velhos - da rua. Nem uma careta arriscou fazer quando o rosto derramou uma lágrima, daquelas que parecem mais suicidas de tão rápidas que caem. Do olho ao chão e pim, espalhou. Ninguém sabia se não eu, e por isso mesmo conto, que era justamente no fim semana passado que este nosso personagem - completamente vestido - gritava junto a outros para o futebol do televisor, enquanto a pessoa sem nome, que serviu de assunto pra conversa que ele ouviu, engasgava em seus últimos suspiros. E absurdo é que do quinto andar do hospital, este colado ao prédio de onde os gritos da torcida rasgavam o ar e chegando sem importância a outro homem, outro que até agora não havia nada de escrito, apesar de bastante pensado. Encostado com a testa nos braços em uma pequena mureta da varanda exterior do centro hospitalar, derrubando lágrimas pela pessoa, que sim sabia muito bem o nome de cor desde pequeno. Líquido lacrimal bem diferente daquele descrito há pouco, tanto pela razão clara e imediata que o provocara, quanto pelo fato de ser recebido com fortes contrações faciais, riscando tortuosamente as bochechas enquanto uma frase saia repetidamente junto ao suspiro...


 "Não, a vida não é assim". 

6 comentários:

Anônimo disse...

Um dos textos mais lindos que li nos últimos tempos...obrigado nego por ter esse olhar para o mundo.
Ajuda-me no aprendizado de entender a vida com leveza!
Vc é um presente! Forte abraço.
Bruno Guimarães

Deise disse...

negooo, adoro quando tu vem com essa tua literatura maravilhosa! deu uma melhorada substancial no meu dia!
agradeço também.

Bau disse...

Foda.

subliterato disse...

homens choram mesmo que por atraso...

Tassia disse...

poxa, contos são o meu ponto fraco e, longe de me achar expert no assunto, gostei pra caramba!!!

CUAL disse...

inspirador...