Era do chão que se podia ouvir o tamanho da festa. Interessante que qualquer um, mesmo de longe, poderia encostar o ouvido sob o solo e sentir como os pés da multidão ensurdecia todo o resto, colidindo-se insistentemente, desordenados em torno das luzes e sons que vinham do alto. Em cima o Rei, chamando todos os olhos da gente pra si como um enorme vaga-lume. O homem em destaque não ostentava uma coroa sobre a cabeça, mas gestos firmes, cantos, gargalhadas que pareciam ecoar do seu palco num tremor sísmico, fazendo com que toda imensa gente repetisse cada ato seu com um desespero alegre, ridículo, porém comovente. Cada fala, melodia ou movimento corporal era acompanhada por uma orquestra que tentava dar conta dos improvisos repentinos do Rei.
No nível mais baixo, claro, haviam ratos que de tão invisíveis chegavam em qualquer dos vários lados, mordendo pequenas migalhas caídas do alto, sendo notados apenas quando esmagados pelos pés agitados.
Já haviam dias que tal ciranda convulsa se entrelaçava entre risos e choros. Mesmo cansada de sede e suor aquela gente não dispersava, não sem que antes contemplassem o fim da festa, que diziam ser a melhor das partes. Alguns caiam desvalidos se juntando aos seres do chão em sua morbidez e invisibilidade. O Rei feio e grotesco ia alternando seu espetáculo com outras atrações como o Vesgo que assobiava valsas, a Bailarina que dançava o balé das estátuas de gelo ou o cachorro que nunca latia.
Depois da criança cinza que batia palmas ao contrário, o Rei, buscando surpreender seus milhares de convidados exaustos antes que sentissem uma peculiar monotonia, resolveu extravasar: tirou dentre suas pernas um enorme pedaço de carne tão crua que parecia ter sido arrancada ali mesmo. A gente toda se calou hipnotizada pelo brilho de pedaço morto ainda salpicando em sangue, que não se sabia ao certo de qual animal saíra. Observando a reação do seu público o Rei arregalou os olhos ainda mais vermelhos com um desejo que lhe fez externar sua língua roxa, desfilando-a por pelo menos quinze centímetros na superfície da suculenta carne... Viu toda aquele gente agitando-se ainda mais, berrando num coro que fez toda a orquestra parar instantaneamente.
Exposta, exibida em riste, apodrecendo em minúsculos vermes famintos, a carne se mantinha presa firmemente entre os dedos do Rei, que lentamente iam se abrindo, um a um, em um ato solene de tão lento. A multidão já se amontoava em cabeças de bocas abertas tentando não desperdiçar nem os mínimos líquidos viscosos que dali escorriam. Pena não haver aí qualquer pintor ou câmera capaz de registrar o tal pitoresco instante, menos ainda havia quando finalmente se foi pelo ar a carne por entre o povo que lhe esperava impaciente. Pouco se pôde saber a partir daí além que aquela gente se meteu em apertos insuportáveis em troca de pelo menos uma lasca da carne que de tamanha confusão se mesclou aos ratos, pernas, pés, ou qualquer tecido vivo que os dentes pudessem segurar. As pessoas foram se amassando, mordendo, se rasgando e mastigando por horas e horas até que tudo virasse uma mesma massa desforme, largamente espalhada em tons de cores irreconhecíveis.
E o Rei depois de muito esperar, protestar atenção e dormir, se viu só, tão só que se despiu e gritou forte pra sinalizar - como se necessário – o término daquilo que continuavam a chamar de “a festa”, talvez por falta de termo mais adequado e historicamente aceito. Aqueles que comentavam e ouviam tudo através dos trépidos sons do chão finalmente se ergueram e seguiram suas vidas até a próxima vez onde quem sabe, com esperança, poderiam participar não apenas com os ouvidos, mas com todas as próprias carnes.
Tamanhos sacrifícios nem mesmo Deus aguentara mais ver e gostar.
4 comentários:
Putz, imaginei a cena... putz...
imaginei um caos e desespero apocalipticos. imagina essa cena? muito massa!
Lindo texto. Muito imagético!
vmos fazer um filme.
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