Era uma vez uma verdade que eu tentava evitar... Sobre meus pés havia um reino de inutilidades unidas por fibras de celulose salpicadas com densas camadas de poeira. Eram provas, cópias, revistas, cadernos e todo tipo de coisa que se empurra num canto propício ao esquecimento, mesmo crendo que estava aos poucos montando um arquivo digno em um quarto de uma vida bagunçada. Não quis mais me apegar naquela desculpa de que pessoas muito organizadas sofrem algum tipo de sentimento de culpa ou trauma infantil. Era momento de se impor sobre aquele caos organizado em pastas e envelopes de cores variadas, casa dos tipos mais estranho de aranhas menores. Mesmo protegido por máscara, luvas e anti-alérgico quase entrei em fase de arrependimento quando me dei conta do tamanho da responsabilidade que a empreitada exigia. Ler, selecionar, descartar, agrupar... Nunca estive tão próximo das leis que regem a arquivologia. A cada folha conferida ia me perguntando revoltado a razão de um dia ter achado aquilo realmente necessário pra estar ali guardado. Impiedoso como Ganesha - o removedor de obstáculos - fui preenchendo sacos plásticos com todo desnecessário que estava cercando por anos meu desenvolvimento material/espiritual, e pior, sem que eu me desse conta disso.
É, o que serviu nem sempre serve pra sempre.
Pequenos exemplos das mudanças tecnológicas iam ressurgindo, demarcando uma jovem velhice que ganha forma através do culto de objetos obsoletos. Eram clássicas fitas-cassete, alguns disquetes, cd's e tudo que já deixamos pra trás em troca de um mínimo pendrive. Não podia me iludir, a tecnologia não me salva nem salvará ninguém!
Uma batalha silenciosamente era travada naquele mesmo piso de madeira retangular: em um canto do quarto um belo montante de xerox de clássicos textos (Thompson, Galeano, Engels, etc), pedaços de livros e teorias que eu certamente não iria reler X no outro canto livros ainda não lidos, carentes de atenção, mas que eu não sei se vou ler.
Aos poucos aquele cenário conturbado foi se transformando num pequeno templo de relaxamento, leveza, próprio pra canções e mantras védicos em nome do desapego. "Hainana hari hari vaiprala, hainana hari hari fikqui". Fotos, cartões de banco, uma bola de gude, fios, sapatos, postais. Tanta tralha representava bem a necessidade de reciclar um passado diante de um presente que exige mais espaço pra fluir. Daí que uma constatação óbvia firmou-se sobre meu suor: preciso dessa habilidade do desacúmulo pra mudar. O desafio é maior que deslocar, desfazer, mas recriar movimento a favor dessa mutação inevitável.
"Hainana hari hari vaiprala, hainana hari hari fikqui"
Uma revolução parece sempre começar assim mínima, pelos cantos, nos quartos e em suas bagunças que lentamente nos organizam pra guardar e modificar.
9 comentários:
Minha filosofia de vida [ainda não aplicada na prática] é que deveríamos possuir apenas aquilo que podemos carregar nas mãos.
realmente o quarto de ramon está um exemplo e já está me inspirando para fazer o mesmo no meu.. apesar de achar que aqui eu ainda não teria muita coragem de jogar nada fora... mas também acho que, nesse caso, ter a inspiração pra mudar já basta e já me deixa satisfeito.
hahahah nnnanananan jajajaajajj ....vou seguir o mantra ..fikaki ..fikla ...massa kkkkkkkkkkkk
vou arquivar porque uma vai se necessário..Usando a linguagem RAMONICA...Fikkkbeeemmm. Abraço Filho
Ora, ora, ora... parece que ficamos todos felizes e inspirados!
Agora, em Caps Lock: SÓ TER A "INSPIRAÇÃO PRA MUDAR" NÃO BASTA!
Acumular. E acumular. E que bom que um dia tu viu esse acúmulo nonsense, afogando coisas novas e tomou coragem pra mexer nas coisas antigas, coisas que a gente fica com um apego besta, outras que a gente nem lembra que existe. É uma metáfora boa pra dar uma olhada lá dentro, nas coisas de dentro da gente que a gente acumula... essa tarefa é mais complicada, mas os efeitos devem ser ainda melhores que pôr o quarto em ordem... Bão, é isso! Fazer espaço pra o novo ter onde surgir.
Ramonzito, meu bem,
Que texto tão bem-vindo, a partir do ato de desacumular que gera um novo vazio! Curti muito cada imagem que você teceu com as palavras e, claro, concordo tudinho com o que Léo escreveu. Sim, podemos chamar a metáfora e olharmos para dentro de nós mesmos.
Ah, Tassinha, sua filosofia muito me agrada.
Beijocas saudosas,
Sarinha
Seria "um lixo extraordinário"?
Pra que serve mesmo o trabalho de Vik Muniz?
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
Começam, quase sempre, dentro de nós. Nos nós!!!!
Tenho esse quadro de Van Gogh no meu quarto-escritório... hj escritório-quarto (tirei a cama)... depois q fiz esse mesma limpeza a 3 anos atrás... agora a cada ano torna-se mais fácil desacumular... basta ter "propensão para o vazio"... e o vazio nos soma...
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