"o habitual é o mais difícil de conhecer,
isto é, de ver como problema, isto é,
de ver como estranho, afastado,
fora de nós"
f. nietzsche
Meu personagem encontrou o olhar dela pelo menos sete vezes naquele dia 14, que fiz quente, chuvoso. Eram olhos tremidos pela lentidão da avenida, pelas rodas tropeçantes do ônibus engarrafado, dando um tom incerto naquele outro rosto a sua frente... Foi essa incerteza que chamou a atenção dele, que logo depois de uma vírgula se virou e me disse:
- Eu preciso desse engarrafamento por um pouco mais de tempo!
O medo dele era de que ela se fosse assim, no próximo ponto, e nada de nada ocorresse. Deixei o ponto passar sem que ela saísse do veículo. Ele queria aquele tempo pra observá-la, pra projetar seus anseios num quase-ato, uma anti-ação não angustiante, mas degustativa... Só imaginar do que ela seria feita além daquele rosto distorcido.
Eles de pé, tendo um metro e quinze de consentimento e distância entre os corpos, e nada mais que treze centímetros entre as mãos, apoiadas nas barras de ferro contorcidas do ônibus.
A espera, o devir deveria comandar aquela história... Por um segundo me senti dominado pelo tal personagem, guiava minhas palavras através do seu olhar lento, do suor mínimo na testa que pensei até em acrescentar uma cicatriz. Enfim aquilo não ia funcionar. Todos ali presos, engarrafados em seus distanciamentos, no não chegar no que realmente queriam... Ninguém naquele ônibus era ou fazia o que realmente gostaria... E meu personagem-paciente sabia disso tanto quanto eu. Tive mesmo que reverter tudo repentinamente, usando aqueles dois personagens em nome do delírio, levá-los a um instante supremo de fazer aquilo que se quer, em nome da coisa que esperamos anos pra sentir. Converti seus mundos num realismo fantástico onde as mãos podiam sem tanta demora se tocar com firmeza, sem receio os olhos também fixados se guiando até o lento pouso dos braços sobre os ombros do outro, e sem pensar, permiti as mãos dadas, saindo pela porta, rodopiando na rua, e como uma valsinha inconseqüente fazendo de tudo uma irresponsável música... Não mais palavra, frase ou conjugação, mas apenas melodia de delírio e do encontro.
--pra thaís m. !
10 comentários:
rotos vagares, olhares furtivos
em reprimidas vontades se debatem.
rostos em pares, pedaços sentidos
em pequenas verdades se desfazem.
corre a mão em desespero.
correm os pés em agonia.
a um ponto que...
passa.
novos olhares vagam aflitos
em instantes: partida
em par os sentidos repousam
numa infinda despedida
correm os olhos em vontade.
rasgam os lábios em coragem.
a um ponto que...
"espera!"
vou começar a proibir esse tipo de comentário que é melhor que texto em questão... fica o aviso maloqueiro.
Muito lindo!
O personagem dominou o autor pelo carisma.
Homem imprescidível se permite ao espanto
Olho-muda no florecimento colhe esperança
Mão-fruta em semeadura gera encantamento
Ramon és um belo rubro arvoredo de sonhos
“Eu preciso desse engarrafamento por um pouco mais de tempo" que lindo! Lembrou-me nosso querido Eliseo, quando afirma que um personagem está pronto e forte o suficiente, quando foge de nós, questiona o rumo das coisas, nos confronta, às vezes, até nos fazendo penar para ter o domínio da situação de volta.
Teu personagem traz a pureza do encontro, do olhar, do desejar incerto. Te confronta querendo tempo pra entender e saber o que fazer, mas tem medo, receio... Não age. E ai, você (Ramon Coutinho), como se tivesse saído dum conto do “primeiras estórias de Guimarães Rosa, transcede tudo a uma condição superior, descarrilhando o trem dos desejos, projetando leveza, para que ele transite com firmeza no esbarrão do encontro, do toque, do enfim, fazer o que se tem vontade. Linda epifania! Delicioso delírio!
" A moça e o moço, quando entre si, passavam-se um embebido olhar, diferente do dos outros; e radiava em ambos um modo igual, parecido. Eles olhavam um para o outro como os passarinhos ouvidos de repente a cantar, as árvores pé-ante-pé, as nuvens desconcertadas; como do assoprado das cinzas a esplendição das brasas. Eles se olhavam para não-distância , estiadamente, sem saberes, sem caso. Mas a moça estava devagar. Mas o moço estava ansioso. O menino, sempre lá perto, tinha de procurar-lhes os olhos. Na própria precisão com que outras passagens lembradas se oferecem, de entre imprecisões confusas, talvez se agite a maligna astúcia da porção escura de nós mesmos, que tenta incompreensivelmente enganar-nos , ou, pelo menos, retardar que perscrutemos qualquer verdade. Mas o menino queria que os dois nunca deixasse de assim se olhar. Nenhuns olhos tem fundo; a vida, também,não.”
Nenhum, nenhuma
Guimaraes Rosa.
“Em nome do supremo delírio” brigou bonito com “sobre um longinquo e afetuoso gesto” e tomou pra si o primeiro lugar no cânone que fiz dos seus textos preferidos.
Mon!
Uma delicia passar aqui! sempre saio um pouco melhor...
Viajei no teu personagem...
Beijo!
Vixe, saiu anônimo!
Sou eu...
Que lindo! Quisera todos tivéssemos a oportunidade que seu personagem experimentou, é fascinante imaginar o tempo parando um pouquinho, pra podermos concretizar alguns delírios... Sempre fico encantada com sua capacidade de tornar as coisas corriqueiras tão especiais aos nossos olhos, você é raro, parabéns por seu texto.
Muitas saudades de desfrutar da sua companhia.
Beijos.
muito bom!!!!!!!!!!!
me dá o papel da menina? rs
e acha pra mim um moço no ponto... que me deixe em espera contínua pelo resto da vida. ai, eu quero o amor infinitamente romântico. rosas e mais rosas, sinos tilintantes, taquicardia e toque...
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