Esqueça a direção que pretende seguir. O destino sempre chega aos que firmam os pés, os levantando a doze centímetros e meio do chão, evitando assim, pequenos e incómodos acidentes, como os de pedras mais altas do passeio beijando dedos desprotegidos, principalmente nos dias chuvosos de quinta-feira. Levante os pés pausadamente, em ordem, um seguindo o outro como em uma marcha para Plaza de la Revolución no dia 26 de julho. Evite mergulhar no olhar das outras caminhantes, evite pensar que elas também pensam no seu olhar descuidado. Alterne sua mirada entre os paralelepípedos, muros e na direção do sol. Concentrando-se em certos temores distantes como o de um povoado na Escócia que vende livros com uma página em branco perdida em algum lugar do volume. Se o leitor desemboca nesta página às três da tarde, morre.* Evite beber água em garrafas plásticas de 1,5 Litros enquanto caminha, evite ler contra-capas de livros de autores que parecem com os cachorros que esperam algo na escada do seu edifício. Evite discutir alternativas de envelhecimento com um homem de 80 anos que carrega no ombro uma câmara de ar de bicicleta vazia. Não invista olhares prologados sobre as casas de portas abertas que sempre apresentam algo novo. Use sapatos escuros sem rasgos, furos ou infiltrações. E por favor, não imagine devaneios como o de um pescador buscando seu peixe entre as nuvens. Com essas instruções a probabilidade de machucar o mesmo dedão do pé esquerdo em menos três dias cai pelo menos 78%, logo perderá a chance de ter uma pequena, mas significativa cicatriz, de uma cidade que se acostumou deixar rastros naqueles que se atrevem a acreditar que estão a conhecendo. Ela, esta cidade, já te conhece bem mais.
*Trecho de Historias de cronopios y de famas, de Julio Cortázar
7 comentários:
Todo o conhecer acaba por cair em nós mesmos.Um pescador buscando seu peixe entre as nuvens,pescando uma pequena, mas significativa cicatriz.Mergulhando em olhares caminhantes, seguindo a direção do sol. Comendo livros com litros de água... oitenta anos com marcas de vida por todo o corpo.
Uau ... a vontade de conhecer Havana me invadiu, dá impressão que a cidade nos possui mesmo a distância.
Beijos Painho
Vou tentar conhecer Havana daqui de Salvador, seguindo os delírios de suas instruções. Se for para evitar devaneios como o de um pescador procurando peixe entre as nuvens, acho que o dedão de Ramón já deve estar todo machucado. :)
"[...] naqueles que se atrevem a acreditar que estão a conhecendo."
Coitados de nós, caravaneiros, que nos iludimos sistematicamente... hehe
Beba as nuvens, que a sêde sede.
Caminhe as ruas, que a cidade arde.
Percorra a idade, que o tempo pede.
Engula os ares, que limpa o céu.
Seus segredos, traga nos bolsos.
Suas vontades, com novos olhares.
Tuas risadas, em novos destinos.
Teus tropeços, deixe nas pedras.
Pés, dedos e olhos,
em sinfônica dissincronia.
Calos, cicatrizes, imagens,
a centímetros da poesia.
Que cicatrizes ganhou a ilha
nessa conversa com uma baía!
Os cronópios, que por aí se escondem, são cristuras verdes e úmidas, distraídas, e sua força é a poesia. Eles cantam como as cigarras, indiferentes ao cotidiano ... grande invasor Cortázar
kkkk...muito bom cara
tô adorando seus textos...
muito legal
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