quarta-feira, 2 de junho de 2010

O modo pelo qual a rua invade

Olá,
te escrevo agora assim não sei por qual razão, afinal falamos muito da última vez... Talvez seja essa noite estranhamente carregada de ventos barulhentos e mexidos. Talvez tenha sido por essa climática razão que minha necessidade de conversar com você tenha se intensificado (ou foi a desculpa mais rápida que pude encontrar agora). Que meio mais inadequado de reconhecer a solidão. Meu quarto está quase que completamente no escuro, salvo por pequenas luminescências externas. A lâmpada se foi há mais de uma semana e até agora não fiz nada a respeito além de ir ler na mesa da cozinha, recolhendo pequenos pedaços de qualquer pão ou biscoito que eventualmente invadem a página. Entre amigos, de Gabo. Ainda não comecei aquele livro que você me presenteou junto a um sorriso orgulhoso que surge raro, quando sabemos e planejamos causar certas satisfações, pequenos mimos. Sei que quando começar a ler vou lembrar daquele momento como se fosse parte da história do livro. Isso você sempre soube misturar, interferir. Ficções, sonhos, realidades.
Engraçado como venho observando essas sombras do meu quarto, de como essa ausência de claridade bem definida me lembrou uma época na qual estava meio obcecado pela infinita variabilidade e uso da luz. Observava o chão do ônibus invadido pelas incansáveis luzes da cidade, se sobrepondo, se ganhando a cada metro percorrido. O modo pelo qual a rua invade aqui através daquele poste distante. Vendo o filme do Guerín, Trem de sombras, percebi que essa beleza tão independente, cheia de si, imprevisível, poderia ser contemplada de maneira mais calma. Lembrei que você falou algo sobre um fotógrafo que realizou um ensaio com pessoas tentando trocar uma lâmpada em um quarto extremamente escuro. Ele devia estar atrás dessa errância, do cuidado com os passos, da impôrtancia, da sutileza do vulto, do pequeno relance, de algo que se vê, mas que logo se perde, se vai... Às vezes sinto essa sensação contigo, principalmente quando você me odeia. Você disse naquele daquela discussão que tinha medo que esse ódio fique de vez, enquanto eu pensava que aquilo não passava de uma quase-luz como a que esse fotógrafo buscava registrar na lente. Também queria registrar aquele seu ódio-vulto pra que depois pudéssemos contemplá-lo com desdém e gargalhadas. Quando estivermos longe sei que serão delas que iremos mais usar pra aliviar saudades. A distância acaba também prestando justiça as essas memórias melhores. E por falar nisso, você lembrou de deixar as chaves perto do abajur? Aliás ele também continua sem lâmpada ?!
A ventania até que passou mais agora, mas essa minha conversa fiada parece ainda toda cheia de horas pra se deixar perder.

Te aguardo em torno das seis no mesmo local que ontem, e me traz uma maçã.

8 comentários:

Léa disse...

Que texto lindo sobre o claro e escuro da vida!
Que bela hora pra marcar encontro: seis. E ainda que não diga dezoito, pressinto que seja seis da tarde, hora que não é mais dia e ainda não é noite. Hora da indefinição.

Urânio Coutinho disse...

O lado afiado de Ramon se manifestando, excelente o texto me identifiquei. nas veredas do subconsciente brota a Luz, que irradia e que contagia, ótimos dias para ti ....kkkkkkk

Tássia disse...

Ramones, acho que vc anda apaixonado... Só escreve coisas lindas!

Ninha disse...

Mon, é incrível como tu consegue dar beleza a coisas... Transformar raiva em beleza...
Obrigada.
Abraço Forte !!

eu? disse...

Que texto lindo, Ramon!
Identifiquei-me muito. A distância faz mesmo justiça às memórias boas, viu? Já nem sei se isso é bom ou ruim, mas tudo bem, né? Acho que não precisa dessa dicotomia, apenas é.

Milene Maia disse...

Encantada!

Sou fã! ;)

Anônimo disse...

"(...) sutileza do vulto, do pequeno relance, de algo que se vê, mas que logo se perde, se vai...": vivemos assim sem nem perceber...bonito texto...legal.
Valeu

Joelma disse...

Quanto mais te leio, mais anseio por um filme seu! Nesse texto especialmente, fiquei imaginando como transporia em imagens, essa solidão noturna e bonita. Como seria essa luminescência, o pequeno relance, o ódio vulto?
Já vejo e sinto o filme que você ainda não fez, e já me sinto totalmente arrebatada por ele!

Hebert Viana tem uma frase muito bonita, que lembrei de imediato quando você falou em ódio-vulto: “Às vezes te odeio por quase um segundo, depois te amo mais” Creio que seja isso que se passe com sua personagem.
Grande beijo