quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A discreta arte de não prestar atenção

Passeava meu olhar farseiro pelos detalhes banais do auditório enquanto pensava nos mais variados dilemas da minha existência varonil. A velocidade com que as palavras saiam da boca da palestrante carregadas por um possante sotaque português de Portugal só me garantia um maior envolvimento nas teias de outros universos, que cada vez mais me distanciavam daquela esquisita palestra.
De repente toda essa minha construção dialética e subjetiva esbarrou em um repetido trecho de música que de alguma maneira empacou no meu juízo: “alma, me deixa ver sua alma, a epiderme da alma”... O embate bizarro entre a voz de Zélia Duncan com a da palestrante portuguesa causou um impacto propício para repensar as reais razões da minha presença no meio daquelas caras bocejantes, diante daquele penteado sorridente, daqueles brilhantes slides carregados de gráficos e de boas intenções. Esse questionamento pareceu ainda mais imperativo quando um colega atrasado me perguntou sobre o que estava sendo discutido... Longos quatro segundos de completo branco me separaram da resposta, que ainda saiu meio engasgada: “Políticas culturais na pós-modernidade”. Sim, foi esse pomposo título que havia me pescado... É, mas também possibilitou uma poltrona confortável, uma temperatura perfeita para minha meditação de fim de tarde. Claro que a chegada em mãos da lista de presença é também fator primordial pra aliviar tais conflitos. Preencher um campo vazio com sua assinatura na frente do seu nome em Caixa alta parece justificar presença mesmo numa convenção de colecionadores de cartões telefônicos.
Imagine se não usássemos a nosso favor todas essas “perdas” de tempo? Morreríamos esperando um ônibus demorado, se irritando nas filas da vida, nas leituras sem sentidos, em aulas chatas, conversas com quase-conhecidos, vendo vídeos do youtube, etc, etc. Tornar leve um tenso e ocupado tempo com pequenos intervalos de ócio é uma arte tão importante quando tirar dos momentos de ócio idéias que ajudem na vida prática. Creio que nosso eterno conflito com o espaço/tempo se torna menos angustiante quando jogamos numa mesma suruba a razão de Apolo com o prazer de Dionísio. Dessa união divina salvamos nossa graça!
Pra sustentar tais devaneios com um ar mais canônico lembremos o que aquele rapaz bigodudo escreveu certa vez sobre: Viver – assim se chama para nós, transmudar constantemente tudo o que nós somos em luz e chama; e também tudo o que nos atinge; não podemos fazer de outro modo.*
Ou é isso ou me acostumo a dar atenção a palestrantes que passam uma hora e meia lendo um PowerPoint. Não, prefiro continuar viajando nos momentos em que meu conveniente e raro silêncio se unir a minha discreta falta de atenção, permitindo tragar do vento as inquietações e perguntas que nunca haverão de ser (graças a Freud!) definitivamente respondidas.
*(NIETZSCHE. A Gaia Ciência)

6 comentários:

SONHO ESTRANHO disse...

muito bom o texto!

agora estou contaminado com o mesmo trecho da musica na cabeça! AAAAAHHHHH!!!

Unknown disse...

Adorei esse trecho...
"Tornar leve um tenso e ocupado tempo com pequenos intervalos de ócio é uma arte tão importante quando tirar dos momentos de ócio idéias que ajudem na vida prática."

Muito massa o texto Monziko, Beijos! =)

Alessandra Negrão disse...

Tudo aquilo que vivemos nos concede um momento novo, uma nova visão e experiência das coisas, ou mesmo uma surpresa boa, até aquilo que era inesperado ou indesejado.

Peço licença pra contar uma história, dentre inúmeras possíveis. Um dia eu precisava que um posto de saúde me desse um cartao internacinal de vacina da febre amarela. Mas eu não tinha o comprovante da vacina, nem podia ser novamente vacinada. O combinado era eu passar na casa do meu ex (ainda era atual) e irmos juntos a um posto em Lauro de Freitas arriscar o improvável.

Pois bem... Pouco antes nós brigamos. Disso decorreu que eu desisti de ir pra lá e passei num posto aqui do Pernambués. A moça que me atendeu, bastante solícita, ouviu minha história e se penalizou (coitadinha de mim, rs), e me deu o bendito documento.

Passei dias me questionando sobre o porquê das coisas... Se eu não tivesse discutido, se eu tivesse ido em Lauro de Freitas, será que eu conseguiria? E se não, será que eu ainda teria esperanças e tentaria o posto do Pernambués?

Acho que não é de "se" que a História é construída, mas é das nossas escolhas. Tudo que a gente escolhe fazer nos leva por um caminho, dentre inúmeros possíveis. O que nos espera lá na frente, não se sabe. Mas parece-me, sutilmente, que tudo tem um sentido de ser. Pro bem ou pro mal, tanto faz. Mas parece que tem. Perdoem a extensão.

subliterato disse...

é isso alê.. é essa sensação do inesperável que há toda graça ...

Carlos Vin disse...

simplesmente excelente texto

J. disse...

É, presuntinho...escreva aí "este blog vai virar livro". E no dia da festa de autógrafos, por favor me chame...rs...

Tb amei, como disse sua colega aí, o trecho "Tornar leve um tenso e ocupado tempo com pequenos intervalos de ócio é uma arte tão importante quando tirar dos momentos de ócio idéias que ajudem na vida prática." P.U.R.A.V.E.R.D.A.D.E. :)

É , enquanto palestrantes se especializam em ler powerpoints, a gente se especializa na arte de não prestar atenção.

Ainda bem que conheço bons palestrantes e neles me inspiro.

Bjs!