O cinema suporta qualquer dor. Melhor dizendo, o cinema é o espaço por excelência da diluição da dor... E quando a dor, de tão grande, estraçalha essa estrutura diluidora, o cinema deixa de articular, entra em estado de pânico ou de afasia, agônico. – Carlos Diegues
Provocar o espectador custa caro, e algumas vezes também é tarefa nobre. Há filmes que praticam tal risco de uma forma tão certeira que nos deparamos com uma quase embaraçosa ausência de juízos de valor bem definidos, o que nos faz obrigatoriamente inclinar sob uma das possibilidades: o silêncio matutante e inquieto, ou a necessidade em preencher tal incômodo com uma qualificação rápida, acabando logo com maiores prolongamentos ou possibilidades mais exigentes. Ao final de A festa da menina morta eu rastreava definições, e dessa agonia percebi que justamente da ausência destas que o filme parece buscar algum valor. Definir pra que mesmo?! Eis que tal descompromisso lhe impregna de um caráter contraditório tanto por impulsionar, como por muitas vezes distanciar o espectador. Em sua primeira empreitada como diretor Matheus Nachtergaele largou sua pedrada com um gosto amargo e desconcertante. Ao mesmo tempo em que buscou originalidade temática e geográfica, bebeu de fontes já conhecidas do cinema contemporâneo. Os contornos dramáticos e a estética virulenta de Claudio Assis (Amarelo Manga/ Baixio das Bestas) estão lá, claramente estampados nos enquadramentos perturbadores e belos de Lula Carvalho.
A diversidade do roteiro, que se ergue principalmente na religiosidade ribeirinha entroncada com a incestuosa relação pai/filho, torna superficial qualquer simplificação. Os simbolismos dos corpos, da natureza amazônica reinante (o rio abissal, a mariposa inquieta, a galinha ensangüentada, o berro do porco), dos objetos (o vestido da menina morta), caminham juntos pra compor a narrativa desse universo cinematográfico denso, angustiante, quase impróprio. E o risco de cair no folclórico, no exótico bem lustrado já tão explorado no cinema nacional parece tentador quando se trata de focar realidades não-urbanas, aqui, no entanto essa apelação escapole por não tentar enquadrar a celebração religiosa em explicações ou motivos. O que rege o filme parece ser a perseguição angustiada daquelas pessoas por um encantamento maior contra um vazio que tanto oscilam e temem em cair... E dessa busca todos padecemos, cada um a seu modo. Nachtergaele opta por um cinema de conflitos, que consagra a tensão constante, onde os atores parecem náufragos em seus personagens, concebidos dentro de uma concepção clara e recente de ficção impregnada por traços documentais. Temperamental, andrógeno, fútil com suas coroas de milagreiro, o personagem de Daniel de Oliveira perde consistência quando reflete diretamente ao modo de atuação de seu diretor. Os personagens mais intensos parecem ser justamente aqueles que estão nas arestas, que aos poucos revelam suas fraquezas, seus delírios, colocando argamassa no todo. As longas cenas, sem cortes, dão a trama um tom guiado por uma trágica dinâmica teatral, que alcança e sufoca mais desprevenidamente os ocupantes das poltronas da sala de cinema, que de susto parecem reagir as vezes com espasmos gargalhantes nas cenas mais absurdas, sem significados óbvios. Aqui não acharemos nada óbvio, e isso tanto pra o lado das cenas em que o excesso gratuito cansa e prejudica (os xiliques do Santinho, o delírio do Padre), como nos momentos em que a espontaneidade dos diálogos e situações garante um fôlego mais envolvente (a velhinha que conversa com a boneca, ou o índio reclamando com a mulher na cozinha).
Assim como Feliz Natal de Selton Melo, Nachtergaele parece movido por uma inquietação artística ainda maior, da qual seus papeis e carreira bem sucedida não davam mais conta. Ambos os atores, agora também diretores, movidos por tanta fome cometem exageros em suas películas, mas com tanta vontade acabam também criando momentos enriquecedores, bonitos, provando o quanto sabem contar histórias, e partindo da dor, da abertura das feridas para solidificar suas intenções.
O espectador que se contentar com a segunda inclinação do início do texto desvie o olhar até mesmo do cartaz, há uma centena de filmes que se enquadram ou não exigem mais que um “bom”/ “ruim”, duas ou cinco estrelas. Sem conforto algum, A festa da menina morta exige um tempo maior, para além da projeção, apontando pra opções mais numerosas, não apenas pra si, mas pro cinema movido mais do que por seus prodígios técnicos, mas por carregar uma essência, uma alma. Essa ânima só será exorcizada e aí sim definida se a coragem e a consciência crítica permearem ambos os lados da tela.
A diversidade do roteiro, que se ergue principalmente na religiosidade ribeirinha entroncada com a incestuosa relação pai/filho, torna superficial qualquer simplificação. Os simbolismos dos corpos, da natureza amazônica reinante (o rio abissal, a mariposa inquieta, a galinha ensangüentada, o berro do porco), dos objetos (o vestido da menina morta), caminham juntos pra compor a narrativa desse universo cinematográfico denso, angustiante, quase impróprio. E o risco de cair no folclórico, no exótico bem lustrado já tão explorado no cinema nacional parece tentador quando se trata de focar realidades não-urbanas, aqui, no entanto essa apelação escapole por não tentar enquadrar a celebração religiosa em explicações ou motivos. O que rege o filme parece ser a perseguição angustiada daquelas pessoas por um encantamento maior contra um vazio que tanto oscilam e temem em cair... E dessa busca todos padecemos, cada um a seu modo. Nachtergaele opta por um cinema de conflitos, que consagra a tensão constante, onde os atores parecem náufragos em seus personagens, concebidos dentro de uma concepção clara e recente de ficção impregnada por traços documentais. Temperamental, andrógeno, fútil com suas coroas de milagreiro, o personagem de Daniel de Oliveira perde consistência quando reflete diretamente ao modo de atuação de seu diretor. Os personagens mais intensos parecem ser justamente aqueles que estão nas arestas, que aos poucos revelam suas fraquezas, seus delírios, colocando argamassa no todo. As longas cenas, sem cortes, dão a trama um tom guiado por uma trágica dinâmica teatral, que alcança e sufoca mais desprevenidamente os ocupantes das poltronas da sala de cinema, que de susto parecem reagir as vezes com espasmos gargalhantes nas cenas mais absurdas, sem significados óbvios. Aqui não acharemos nada óbvio, e isso tanto pra o lado das cenas em que o excesso gratuito cansa e prejudica (os xiliques do Santinho, o delírio do Padre), como nos momentos em que a espontaneidade dos diálogos e situações garante um fôlego mais envolvente (a velhinha que conversa com a boneca, ou o índio reclamando com a mulher na cozinha).
Assim como Feliz Natal de Selton Melo, Nachtergaele parece movido por uma inquietação artística ainda maior, da qual seus papeis e carreira bem sucedida não davam mais conta. Ambos os atores, agora também diretores, movidos por tanta fome cometem exageros em suas películas, mas com tanta vontade acabam também criando momentos enriquecedores, bonitos, provando o quanto sabem contar histórias, e partindo da dor, da abertura das feridas para solidificar suas intenções.
O espectador que se contentar com a segunda inclinação do início do texto desvie o olhar até mesmo do cartaz, há uma centena de filmes que se enquadram ou não exigem mais que um “bom”/ “ruim”, duas ou cinco estrelas. Sem conforto algum, A festa da menina morta exige um tempo maior, para além da projeção, apontando pra opções mais numerosas, não apenas pra si, mas pro cinema movido mais do que por seus prodígios técnicos, mas por carregar uma essência, uma alma. Essa ânima só será exorcizada e aí sim definida se a coragem e a consciência crítica permearem ambos os lados da tela.
5 comentários:
Você está escrevendo de forma brilhante, Mon! Se antes você já era poético, observador e crítico, sem perder a sensibilidade, agora então! Seus textos são extremamente bem escritos. Passando disso para a temática, o filme me parece bastante profundo. Espero ter tempo de ver para reler seu texto e ter uma opinião. Abraço!
o filme é isso o que é, plano, sei lá, conta uma história, teatralmente, e me deixou assim, sem saber o que dizer sobre ele, sem ter o que pensar, meio bêbada. é plano, solto e leve. não tenho noção de quantas estrelinhas merece, acho que não dá pra contar por aí não...
Sobre a atuação de Daniel de Oliveira evocar à do próprio Matheus Natchergaele creio que seja pelo fato da personagem Santinho ser meio autobiográfica. Digo isso porque li que o Matheus perdeu a mãe cedo, ela cometeu suicídio coisa e tal - assim como a mãe de Santinho. Não acho que deva ser mera coincidência. Dirigir tem um caráter mais autoral, e ele como artista deve ter desejado sublimar suas inquietações, me questiono aqui até que ponto ele fez isso. De todo modo, gostei do delírio, da febre e do fervor do filme. Do discurso sobre a palavra dor, da atuação do Daniel, das sutilezas e do ar estranho, silencioso. Deveria só ter fugido um pouco da estética do teatro em algumas cenas, a do discurso do padre por exemplo. Dias depois consigo até dizer mais algumas palavras, veja só, rs. Esse daí foi difícil!
Concordo quando explicita os exageros cometidos pelo diretor. Cansei de algumas bizarrices do cinema nacional, da realidade nua e crua, do sofrimento escorrendo, do sangue à vista, da tortura mental. Não sei, sinceramente, até que ponto isso vale a pena. Não creio que os roteiros devam ser superficiais. Mas, apelar pela simples satisfação de apelar, de mexer nas vísceras, de apertar a ferida...
A atuação de Daniel?? Não, não gostei...
Assisti algumas vezes "A festa da menina morta" até achar uma forma de entender o que esse filme me dizia além das imagens exóticas, dos personagens excêntricos, de uma realidade perdida e escondida nos confins da Amazonia... E até agora não tive uma resposta que me satisfizesse. Tive algumas vagas percepções, o que premeditadamente me fez sentir uma vontade de apelar para o discurso de julgar o filme pelos argumentos mais superficiais do senso comum.
Mas, acho que alguns filmes são exercicios de experimentações onde deveriamos transcender nossa forma de olhar a vida (exibida na tela), sem utilizar nossos tradicionais juizos de valores, tentando atingir o entendimento de uma outra realidade sem argumentos meramente intelectuais ou racioanais.
Este filme me angustiou qdo comecei a pensar na origem das religiões ou qdo coloquei em xeque algumas de minhas crenças mais profundas.
Quanto a relação incestuosa, não me causou desconforto, e achei interessante o argumento do diretor (Matheus Natchergaele) qdo diz que o estranho neste tipo de relação deve-se ao fato da possibilidade de reprodução consaguinea, já no caso dos personagens envolvidos (pai e filho) é uma escolha que só diz respeito a eles.
Independente dos meus valores pessoais, gosto de filmes que me sacudam, que me traga um prisma onde eu possa enxergar a vida de diversar outras formas, mesmo que eu não concorde com nenhum dos seus argumentos. Gosto de bons argumentos "absurdos". Não gosto da idéia dos filmes que só acariciam minhas verdades ideológicas.
Dito tudo isso, parabéns Ramom pela crítica. É massa ter um espaço de debate como este... um cineclube virtual.
Abraços!
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