quarta-feira, 30 de junho de 2010

Um lugar, algumas idéias

Queria escrever um roteiro com uma antiga idéia. Uma mulher triste encontrava um diário e começa a fazer o mesmo que estava escrito nele. Iniciei os trabalhos, desenvolvi a tarefa dramática, fui percebendo o quanto aquela personagem era complexa, o quanto a história precisava de mais tempo, de outros diálogos internos. Outra idéia me piscou na cabeça justamente enquanto passava pelo “Camino del pensamiento” voltando pro apartamento da escola. Esse trajeto entre a sala de aula e quarto era sempre marcado por essa reconstrução do universo que eu desejava criar. Distante do movimento de Havana a escola é quase uma ilha dentro da ilha, uma mescla de manicômio criativo com campo de concentração do cinema. É o conhecimento, o estudo e a concentração convivendo com as poucas horas de sono, com a loucura das festas, com o conhecer os mais variados tipos de cabeças e nacionalidades. Acho que a Eictv é isso e algo mais escondido entre suas árvores... Um lugar que induz a criação permitindo suas crises. E isso não apenas pelas aulas e pelos professores incríveis, mas também por seus espaços amplos, sua arquitetura do contato, do olhar, da conversa fácil com outros tantos e consigo próprio. Um lugar onde a arte (quase) nunca dorme como Coppola pichou em uma das paredes do pátio. Havia gastado meses imaginando como seria essa experiência, tentando manter tais expectativas em níveis saudáveis de imaginação. Foi tentando traduzir “Bom senso” de Tim Maia pro Portuñol em uma mesa do café da escola para um russo de cabelo espetado, uma mexicana de olhos grandes e risonhos, um colombiano com cara de nerd andando de muletas, que percebi que nada que havia especulado teria chance de chegar perto daqueles momentos. As mudanças internas necessariamente tiveram que ser externadas das maneiras mais variadas... Os móveis do apartamento 314 foram mudados de lugar, a azulejo do banheiro riscado com um manifesto escatológico, a mesa carregada de papeis, canetas e garrafas, entre outros objetos não identificados. As portas também marcadas com os nomes dos membros – Eric (el psicopata), Gonsalvez (vulgo Satán), João (el singao), Ramón (pero sin queso), Andrés (la muleta) e Mauriño (el doble culo).
No último dia de curso o Professor Eliseo nos pediu para que lêssemos um trecho do nosso roteiro em sala. Deveria ser uma parte que pudesse resumir tudo aquilo que gostaríamos que os outros sentissem com a nossa história. Quase que automaticamente fui pra um trecho curto, um dos poucos momentos onde ouvimos o personagem:

O homem corre pela rua do povoado, olhando pra tras.
Mendigo (off)

Eu deveria estar longe, eu deveria estar só.Eu estaria melhor esquecido, mas o silêncio é difícil de achar, de colocar pra dentro. Eu tinha uma boa história, tão boa que me faria esquecer tudo. Tento lembrar, mas ela se perdeu de mim.

Acho que essa história de um mendigo tentando fugir dos próprios sonhos também já me acompanhava há algum tempo, quem sabe esperando um momento propício para ser desenvolvida. Acho que essas duas semanas respirando intensamente a Escuela me deixaram mais próximo de multiplicar essas brechas, alargar esses “momentos propícios” também pra outros lugares e instantes... Poder construir esses processos criativos sempre colados a ousadia de despertar idéias sem jamais separá-las dos lugares onde pisamos, do que sentimos e queremos realmente dizer. Talvez por isso que o título do meu roteiro tenha saído assim tão pretensioso - Eu sabia que você não conseguiria colocar o silêncio pra dentro.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

impossibilidades possíveis

Aqui parado olhando essas teclas fico pensando sobre uma idéia que tive uma vez. O início dela, mínima, meio besta, descompromissada, até a sensação da sua real concretização. Lembro do dia 11 de novembro que escrevi no alto do meu caderno verde: "Cuba: uma idéia (quem sabe um dia talvez...) !", e mais embaixo "hoje captei um objetivo concreto, empolgante e nem tanto distante - fazer um curso na escola de cinema naquela ilha que eu sonho em conhecer há anos...". Enfim depois de muitas viagens internas e externas, palavras, informações, emails, projetos, declarações, prazos, papeis e nervossísmos aqui estou em meio a intensidade da prática. Expectativas, pensamentos insônicos, euforia... Hoje, olhando o corredor da casa da Senhora Estilita Rodriguez, fiquei pensando que não há melhor coisa que ter uma vontade e achar a chance de praticar tais impossibilidades possíveis.
O cheiro de Havana agora me invade e me parece que nunca estarei pronto pra ela... e isso me encanta.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

O modo pelo qual a rua invade

Olá,
te escrevo agora assim não sei por qual razão, afinal falamos muito da última vez... Talvez seja essa noite estranhamente carregada de ventos barulhentos e mexidos. Talvez tenha sido por essa climática razão que minha necessidade de conversar com você tenha se intensificado (ou foi a desculpa mais rápida que pude encontrar agora). Que meio mais inadequado de reconhecer a solidão. Meu quarto está quase que completamente no escuro, salvo por pequenas luminescências externas. A lâmpada se foi há mais de uma semana e até agora não fiz nada a respeito além de ir ler na mesa da cozinha, recolhendo pequenos pedaços de qualquer pão ou biscoito que eventualmente invadem a página. Entre amigos, de Gabo. Ainda não comecei aquele livro que você me presenteou junto a um sorriso orgulhoso que surge raro, quando sabemos e planejamos causar certas satisfações, pequenos mimos. Sei que quando começar a ler vou lembrar daquele momento como se fosse parte da história do livro. Isso você sempre soube misturar, interferir. Ficções, sonhos, realidades.
Engraçado como venho observando essas sombras do meu quarto, de como essa ausência de claridade bem definida me lembrou uma época na qual estava meio obcecado pela infinita variabilidade e uso da luz. Observava o chão do ônibus invadido pelas incansáveis luzes da cidade, se sobrepondo, se ganhando a cada metro percorrido. O modo pelo qual a rua invade aqui através daquele poste distante. Vendo o filme do Guerín, Trem de sombras, percebi que essa beleza tão independente, cheia de si, imprevisível, poderia ser contemplada de maneira mais calma. Lembrei que você falou algo sobre um fotógrafo que realizou um ensaio com pessoas tentando trocar uma lâmpada em um quarto extremamente escuro. Ele devia estar atrás dessa errância, do cuidado com os passos, da impôrtancia, da sutileza do vulto, do pequeno relance, de algo que se vê, mas que logo se perde, se vai... Às vezes sinto essa sensação contigo, principalmente quando você me odeia. Você disse naquele daquela discussão que tinha medo que esse ódio fique de vez, enquanto eu pensava que aquilo não passava de uma quase-luz como a que esse fotógrafo buscava registrar na lente. Também queria registrar aquele seu ódio-vulto pra que depois pudéssemos contemplá-lo com desdém e gargalhadas. Quando estivermos longe sei que serão delas que iremos mais usar pra aliviar saudades. A distância acaba também prestando justiça as essas memórias melhores. E por falar nisso, você lembrou de deixar as chaves perto do abajur? Aliás ele também continua sem lâmpada ?!
A ventania até que passou mais agora, mas essa minha conversa fiada parece ainda toda cheia de horas pra se deixar perder.

Te aguardo em torno das seis no mesmo local que ontem, e me traz uma maçã.